sábado, novembro 04, 2006

FREUD, NIETZSCHE E O ÜBERMENSCH

O termo “repressão” é ora empregado com o sentido de “recalque”, a impossibilidade de DIZER algo, ora com o sentido de “retenção”, a impossibilidade de FAZER algo. Ao afirmar que sua natureza –

“não sabe separar DIZER NÃO À AÇÃO de DIZER SIM À PALAVRA” (“Ecce Homo”. Harmondsworth, England: 1985, p. 80; destaques meus)

Nietzsche sinaliza com clareza que o Macht – poder – desejado pelo Übermensch – o ser humano superior[1] – é o de ELIMINAR O RECALQUE, MANTENDO A [possibilidade de] RETENÇÃO
.
Com efeito, sua obra repete cansativamente que Übermensch é aquele que tem suficiente coragem para verbalizar ( = eliminar o recalque ) todos os aspectos da existência –

“toda a existência aqui [na proposta de zarathustra] deseja TORNAR-SE PALAVRA” (ibid., p. 103; destaque meus)

– permitindo a entrada na consciência de tudo que, até sua chegada, ficou escondido –

“uma afirmação sem reservas mesmo do sofrimento, mesmo da culpa, mesmo de tudo que é estranho e questionável na existência” (ibid., p. 80)

– sob uma visão idealizada do homem –

“tendo na mão uma tocha cuja luz não treme, eu ilumino com um brilho cortante o submundo do ideal.” (ibid., p. 89)

Essa proposta implica uma Umwertung aller Werte – uma transmutação de todos os valores – pois passa a considerar o patológico – a possibilidade de colocação de todo e qualquer pathos no logos – como característica da saúde e não, da doença.
Já a luz da tocha de Freud por vezes treme e ele, nesses momentos, coloca a ELIMINAÇÃO DA RETENÇÃO, NÃO DO RECALQUE, como o objetivo humano, cometendo, inclusive, em “Psicologia das Massas e Análise do Ego” (1921), a asnice de confundir o sofisticadíssimo Übermensch nietzschiano com as medulas ambulantes que teriam sido os chefes das hordas primitivas e que, segundo sua visão, FAZIAM o que queriam, sem ter limites que os contivessem.
Toda vez que se entender que o poder visado pelo homem superior de Nietzsche é o poder de tudo FAZER , em vez de poder de tudo FALAR, vai-se tirar a descabida conclusão de que a obra desse grande pensador, que abominava a truculência germânica, presta-se a fornecer fundamento ideológico para o nazismo.
[1] Traduzir “Übermensh” por “super-homem” parece-me absolutamente catastrófico. Primeiro, perde-se referência ao fato de que, em alemão, “der Mensch” é “o ser humano”, englobando o homem e a mulher (“der Mann” é o termo que ser refere especificamente ao ser humano masculino); segundo, a aura associativa de “super-homem” aponta mais para um ferrabrás hollywoodiano do que para alguém que atingiu os cumes da possibilidade de desenvolvimento humano.