terça-feira, fevereiro 28, 2006

LAICIDADE CONSTITUCIONAL

(Resposta a Thiago Balat, que me perguntou sobre a possibilidade de lhe fornecer algum material sobre “laicismo constitucional”, seja, a separação, estatuída pela Constituição de um Estado, entre esse último e a Igreja.)

Thiago, fui, durante muitos anos, professor em nível universitário. Para meu gosto, as melhores monografias não são uma mera “colcha de retalhos” de informações, mas organizam essas últimas segundo uma idéia rectora. Se eu fosse escolher uma para a sua, eu escolheria: “Quem tem medo, tem fé; quem não tem, tem crítica”. Pois bem: embora haja medos – em um paciente paranóico, por exemplo – de natureza delirante, sem qualquer base na realidade, via de regra o medo de um sujeito, de um grupo social ou de toda uma sociedade, varia de forma diretamente proporcional a sua sensação de impotência frente aos perigos que o ameaçam. Quando esse medo é maior, recorre-se à fé; quando menor, à critica. Por razões que poderemos posteriormente aprofundar, as últimas décadas da Idade Média presenciaram um aumento da sensação de potência no homem europeu que, como uma água que esquenta e, de repente, ferve, arrebentou no Renascimento, que deslocou o homem da ênfase de servir a Deus, para a ênfase em servir a si mesmo, deslocamento condensado na frase “o ser humano é a medida de todas as coisas”. Mas o Renascimento foi, sobretudo, o deslocamento da “meta” do empreendimento humano. Dois passos, não obstante, ainda seriam fundamentais, no processo ali iniciado, para que devidamente se estatuísse o novo “instrumento” a implementá-la.
O primeiro desses passos, separar “assuntos humanos” de “assuntos divinos”, teve nítida e vigorosa aparição em 1520, com a publicação de “DISCURSO À NOBREZA CRISTà DA NAÇÃO ALEMÔ, de Martinho Lutero, onde o autor defende que os assuntos humanos devem ser decididos mediante os ditames do “bom senso” e os divinos, segundo os da fé. Estava apontado o caminho para o Iluminismo[1]: mal fora enunciado esse “tratado de Tordesilhas epistemológico” entre “assuntos humanos” e “assuntos divinos” (tratado re-escrito, cem anos depois, por Descartes, como a distinção entre res cogitans e res extensa), e começam a espocar obras que são monumentos à aplicação da crítica, não da fé, à compreensão do mundo: Copérnico – De Revolutionibus Orbium Celestium (1543) – Vesalius – De Humani Corporis Fabrica (1543) – Gilbert – De Magnete Magneticisque Corporibus (1600) – Kepler – Astronomia Nova (1609) e Harmonices Mundi (1619) – Harvey – Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (1628) – Galileu – Dialogo ... Sopra i Due Massime Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano (1632) – Boyle – The Sceptical Chymist: or Chymico-Physical Doubts & Paradoxes (1661) – Newton – Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687). Essas obras-primas da razão humana prepararam o caminho para que fosse dado o segundo dos referidos passos (que, na verdade, já havia sido bem ensaiado por Francis Bacon, em seu Of the Proficiency and Advancement of Learning, Divine and Humane, de 1605): esse segundo passo foi o surgimento, ao longo do século XVIII, do que, em português, se convencionou chamar de Iluminismo (Em francês, por exemplo, “Illuminisme” significa algo bem diverso), que tratou, através de trabalhos como os de Bayle – Dictionaire Historique et Critique (1697) – Diderot – Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (1751-1772) – Voltaire – Dictionnaire Philosophique Portatif (1764) – e Kant – Kritik der reinen Vernunft (1781) – de polir as justificações filosóficas para o tipo de pensamento crítico que deram origem, durante os anos seiscentos, às obras primas que acabamos de listar. Enfim, trezentos anos depois de ter sido proposto, o Tratado de Tordesilhas epistemológico de Lutero já havia: (1) demonstrado a avassaladora capacidade produtiva do pensamento crítico e (2) encontrado fundamentação filosófica para esse último.
Em seu conjunto, o processo descrito acima pode ser assim resumido: (1) sucesso humano em lidar com o ambiente, produzindo bem-estar e riqueza, (2) aumento de auto-confiança e conseqüente diminuição do medo, (3) aumento de aplicação da atividade crítica – o que implica laicidade – às áreas cuja “compreensão” dependia anteriormente do recurso à autoridade e à fé. Chegamos ao problema da laicidade constitucional. É evidente que o abocanhamento pelo pensamento crítico, para sua análise, de áreas anteriormente dominadas pela fé foi resultado de uma luta de poder: as guerras religiosas que se seguiram à Reforma foram um sangrento testemunho disso. Ganhou a separação luterana entre “assuntos humanos” e “assuntos divinos”. Ora, como todo sistema jurídico não faz mais do que cristalizar, sob forma de lei, as relações de poder que tipificam um determinado momento histórico (outras explicações são blá, blá, blá), TAL PROCESSO TEVE COMO EPIFENÔMENO O APARECIMENTO DE CONSTITUIÇÕES QUE SEPARAVAM AS ESFERAS DE AÇÃO DA IGREJA E DO ESTADO.
É verdade que “quem nunca comeu melado, quando come se lambuza” e o Iluminismo ficou tão eufórico com o descobrimento do poder crítico da mente humana, que começou a fazer bobagens como a de, à época da Revolução Francesa, passearem pelas ruas de Paris uma estátua da Deusa Razão e, mais tarde, o anti-religioso Auguste Comte cometeu a insanidade de construir um Templo da Razão. Como dizia, Oscar Wilde: “os remédios dos homens acabam sempre contaminados pelas doenças que pretendem curar”.
Valeria acrescentar a tudo isso uma pitada de Haeckel, por sua afirmação de que todo processo evolutivo implica três elementos: crescimento, diferenciação e integração das partes diferenciadas. Mas isso fica para outro papo, inclusive porque Haeckel não conhecia os japoneses e passaria pelo perigo de concluir que, sendo a válvula maior do que o transistor e esse último do que o “chip”, a válvula era a mais “evoluída” dos três.
Em tempo: quando Freud, no fim do século XIX para o seguinte, resolveu aplicar à res cogitans o mesmo tipo de pensamento crítico que, marcadamente a partir de Copérnico e de Vesalius, passou a ser aplicar à res extensa, todas as forças anti-iluministas foram de novo mobilizadas para impedir esse novo avanço da razão. Como afirmou Galileu: “Acredito que não haja maior ódio, nesse mundo, do que o da ignorância em relação ao saber”.
[1] “There is ... some tendency among historians of the Western culture to use ‘Age of Reason’ for the seventeenth and eighteenth centuries together, and to confine ‘Enlightenment’ [ correspondente ingles do português “Iluminismo’ ] to the eighteenth century, when the characteristic ideas and attitudes of rationalism had spread from a small group of advanced thinkers to a relatively large educated public.” BRINTON, Crane. “Enlightenment”, in: EDWARDS, Paul (ed.). The Encyclopedia of Philosophy. New York: Macmillan, 1967.