César Ebraico
Eu: — Freud !
Freud: — Humm?
Eu: — Preciso conversar com você. O assunto é grave.
Freud: — O que foi?
Eu: — Acho que você deu um fundamento behaviorista à Psicanálise e isso está
dando a maior confusão.
Freud: — Behaviorista? Que é isso?
Eu: — É simples. É uma escola de pensamento que afirma que o único tipo de dado
psicológico merecedor de ser considerado científico são os que se podem diretamente
observar.
Freud: — Que estupidez! Eu não tenho nada a ver com isso!
Eu: — Tem.
Freud: — Como?
Eu: — Quer ver?
Freud: — Duvido um pouco, mas vamos lá.
Eu: — Tem mais: o que é behaviorista em sua teoria global é a sua teoria da
sexualidade.
Freud: — O quê???!!!
Eu: — Isso mesmo que você ouviu. Você não ampliou o conceito de sexualidade?
Freud: — Sem dúvida. E isso é fundamental.
Eu: — Acredito, mas tem confusão aí.
Freud: — Como assim?
Eu: — Como foi a ampliação que você fez desse conceito?
Freud: — Fiz três ampliações básicas: estendi a sexualidade à infância;
estendi-a ao simbólico e ampliei o próprio conceito de sexualidade para além de
suas vinculações com o fim de reprodução.
Eu: — Você se importaria de falar um pouco sobre cada uma dessas ampliações?
Freud: — De forma alguma. Vamos por partes. No que diz respeito à primeira, a
extensão à infância, era evidente o absurdo de se imaginar que a sexualidade
havia caído do céu na puberdade, sem que houvesse passado por estágios
anteriores, infantis, de desenvolvimento. Você deve, inclusive, se lembrar de
eu haver declarado que me sentia meio mal com o fato de que parte de minha fama
era devida a eu sustentar a veracidade de um fato fartamente conhecido por
qualquer babá.
Eu: — É verdade. E a segunda extensão?
Freud: — Bem, mostrei com ênfase e clareza como a sexualidade invadia os
símbolos usados pelo ser humano. Como, p.e., ao falar de uma minhoca entrando
na terra, podemos estar querendo nos referir ao coito. Mas, aqui, também chamei
atenção para como todo esse conhecimento parece estar à disposição de qualquer
um de nós, mesmo não psicanalistas, fato que se revela, p.e., na especial
capacidade de as pessoas apaixonadas compreenderem os mais sutis símbolos
enviados pelo objeto de suas paixões.
Eu: — E a terceira extensão?
Freud: — Como eu disse, estendi o conceito de sexualidade para além de suas
vinculações com o fim de reprodução.
Eu: — Tem behaviorismo aí.
Freud: — !?
Eu: — Posso demonstrar-lhe isso. Mas dependeria, se você estiver de acordo, de
que me repetisse os argumentos em que fundamenta essa terceira extensão.
Freud: — Não me custa. Na verdade, é bem simples. Essa extensão se baseia na
análise das perversões. Aliás, você deve se lembrar de que, em minhas
“Conferências Introdutórias à Psicanálise”, deixei bem claro
que essa análise das perversões é o único fundamento para a nossa
afirmação de que sexualidade e reprodução não coincidem.
Eu: — Sua análise das perversões é behaviorista, não é psicanalítica. Repita a
sua argumentação e mostro-lhe isso.
Freud: — Aceito o desafio. Responda-me, então: homossexualidade, pedofilia,
sadomasoquismo, fetichismo são perversões sexuais, não são?
Eu: — Não tenho dúvidas quanto a isso.
Freud: — Pois bem. Homossexualidade, pedofilia, sadomasoquismo, fetichismo têm
alguma coisa a ver com os fins de reprodução?
Eu: — Você acha que não?
Freud: — Você tem alguma dúvida? Você acha, por exemplo, que uma relação sexual
anal tem alguma coisa que ver com os fins de reprodução?
Eu: — Você andou tendo aulas com Watson?
Freud: — Watson?
Eu: — Fundador do behaviorismo...
Freud: — E o que tem ele a ver com esse seu argumento?
Eu: — Olha aqui, Freud: se Watson me dissesse que uma relação sexual anal nada
tem a ver com os fins de reprodução porque não há ovários nos intestinos, estava
tudo bem. Você não tem esse direito. Não porque eu lho tire, mas pelas próprias
posições teóricas e metateóricas que você mesmo adotou.
Freud: — Que é “metateórica”?
Eu: — Não importa. Peço, apenas, que você siga uns instantes meu raciocínio e
você entenderá o que quero dizer.
Freud: — Vejamos.
Eu: — Pois veja. Você não estendeu a sexualidade ao simbólico, como você mesmo
afirmou há pouco?
Freud: — Sem dúvida.
Eu: — E não foi você que expôs ao mundo a tão freqüente fantasia infantil de
que crianças nascem pelo ânus?
Freud: — Você sabe que sim.
Eu: — Pois bem, o que terá impedido a você, que reconheceu tão claramente as
fantasias infantis de nascimento pelo ânus, de ver a possibilidade de que, no
coito anal, esteja subjacente a fantasia de emprenhar a mulher pelo mesmo lugar
em que se fantasiou que ela é capaz de parir? Falando de forma mais geral: o
que lhe terá impedido de entender as perversões — seja a relação anal, sejam
quaisquer outras — como o resultado do conflito entre o desejo de reprodução e
as demais forças que se opõem a ele? Na verdade, posso-lhe afirmar que, nas
análises que realizei, as perversões sempre se revelam como expressões
distorcidas — daí o termo “per-vertidas” (vertidas em um lugar marginal) — de
um desejo de reprodução. Só um behaviorista pode afirmar que uma relação
homossexual não tem nada a ver com o fim de reprodução, porque não é capaz,
como deveria ser um psicanalista, de hipotetizar que essa relação pode
simplesmente ser o desvio, por razões defensivas, dos desejos sexuais para um
lugar onde a reprodução não pode ocorrer. Você sabe muito bem que o fato de um
impulso não atingir o fim que almeja não desqualifica esse fim como sendo o
almejado. Falou isso claramente, quando afirmou que o fato de determinados
sonhos produzirem angústia não desconfirma a hipótese de que, originalmente,
sua meta era produzir prazer: mostra, apenas, que algum obstáculo impediu que
esse fim fosse atingido. E acrescente-se, dizer que uma árvore frutífera não
tem nada a ver com produzir frutos porque, por exemplo, não atingiu a idade de
fazê-lo, ou porque a puseram abaixo antes disso é um raciocínio tão primitivo
que não faz jus à genialidade de sua restante produção teórica.
Freud: — !?
Eu: — Quero-lhe fazer mais uma pergunta.
Freud: — Ainda estou pensando no que você me disse, mas faça.
Eu: — O que é que você acha de sua própria afirmação de que a mulher não tem
medo de castração porque não tem pênis?
Freud: — Alguma coisa de errado também aí?
Eu: — Lamento, mas acho que sim.
Freud: — O quê?
Eu: — Você, certamente, já visitou uma fazenda.
Freud: — Claro.
Eu: — E, possivelmente, já viu castrarem algum animal.
Freud: — Um cavalo.
Eu: — Foi o pênis que tiraram dele, Freud?
(Silêncio)
Eu: — Foi o pênis, Freud?
Freud: — Não, foram os testículos.
Eu: — Responda-me mais uma coisa: você se lembra de Frau Meyer?
Freud: — A dos gatos?
Eu: — Exato. Lembra-se de que havia uma gata da qual ela nunca se separava?
Freud: — Claro. Uma angorá branca.
Eu: — Lembra-se de que ela mandou castrar essa gata?
Freud: — É verdade.
Eu: — Então, diga-me uma coisa: foi o pênis que tiraram da gata?
(Silêncio)
Eu: — Foi o pênis, Freud?
Freud: — Não.
Eu: — Foi o quê?
Freud (com evidente má vontade): — Os ovários.
Eu: — Então, Freud, como é que a mulher não pode ter medo de castração?
Freud: — Confesso que estou um pouco confuso...
Eu: — Talvez eu possa ajudá-lo.
Freud: — Por favor...
Eu: — Vou usar, para fazê-lo, a teoria que aprendi de você.
Freud: — Diga.
Eu: — Você tem dificuldade de pensar a castração e, por isso, executou-a.
Freud: — Como assim?
Eu: — Não é claro que pensar a castração como ablação do pênis é uma distorção
de seu real significado?
Freud: — De imediato, não estou vendo maneira de escapar disso...
Eu: — Você não nos ensinou que quem não pensa, faz?
Freud: — E estou certo disso.
Eu: — Pois bem. Acho que a castração que você não conseguiu pensar —
identificando-a enganosamente com a retirada do pênis e, não, das gônadas,
sejam, os testículos e os ovários — essa castração não pensada você a executou
em sua teoria, desvinculando a sexualidade de seus fins de reprodução,
cometendo, em ambos os casos, infrações flagrantes, como vimos, da lógica e do
bom-senso.
Freud: — Estou perplexo.
Eu: — Acha que vale a pena irmos adiante?
Freud: — Como assim?
Eu: — Você nos ensinou que, quando uma pessoa lógica e de bom-senso, comete uma
infração evidente da lógica e do bom-senso, ela está sendo vítima da ação de
idéias reprimidas. Não é assim?
Freud: — Não tenho qualquer dúvida quanto a isso.
Eu: — Você é uma pessoa lógica e de bom-senso, não?
Freud: — Considero-me assim.
Eu: — Também eu. Assim sendo, se uma pessoa lógica e de bom-senso, cometeu, em
um ponto-chave de sua teoria, uma flagrante infração da lógica e do bom-senso,
nesse ponto você deveria estar sob a ação de algumas dessas idéias. De acordo?
Freud: — Seria impossível não concordar. Mas qual seriam elas?
Eu: — Gostaria de agrupá-las sob o nome de Complexo de Caim.
Freud: — Você diz alguma coisa em relação aos meus irmãos?...
Eu: — Trata-se, naturalmente, de uma mera hipótese, que deveria ser testada a
partir de suas associações espontâneas a ela.
Freud: — E qual seria essa hipótese?
Eu: — No meu entender, você usou materiais relativos a sua rivalidade com o seu
pai — parte, em suas próprias palavras, de seu Complexo de Édipo — como
memórias encobridoras de sua rivalidade com seus irmãos. Explico-me. Veja bem.
Nos materiais do Complexo de Édipo, é seu pai o responsável pela ameaça de
castração, que, em sua compreensão dessa última, visaria, não os testículos,
mas o pênis. Na hipótese a que me estou referindo, é você que representa essa
ameaça e, permita-me, ela se volta contra os ovários de uma mulher, sua mãe.
Freud: — Você está sugerindo que nossa culpa original está relacionada a um
desejo de castração, não ao medo dela, e que esse desejo original está voltado
para os ovários de nossa mãe, por rivalidade, não com nosso pai, mas com irmãos
supostos ou reais?
Eu: — Não generalizemos. Eu estou sugerindo é que sua culpa original está
relacionada a um desejo de castração voltado para os ovários de sua mãe, por
rivalidade com seus irmãos, todos eles bastante reais. Uma generalização maior
dependeria de outras análises, se bem que posso, desde já, admitir que tenho
freqüentemente confirmado a presença do Complexo de Édipo como defesa erigida
contra a conscientização do Complexo de Caim. Em todos esses casos, o menino
projetou sobre a mãe seus próprios impulsos de castrá-la, passou a temer que
ela fizesse isso com ele, deslocou essa figura materna ameaçadora para o pai e
desviou seu medo de perder os testículos para o medo de perder o pênis.
Freud: — Bem, se for assim...
Eu: — Gostaria de completar algo antes de ouvi-lo. Acho que, em seu caso
específico, esse impulso para castrar, insuficientemente analisado,
possivelmente se fixou em torno do nascimento de sua irmã, Ana, nascida quando
você tinha dois anos e meio de idade, mais do que em torno do nascimento de seu
irmão Julius, que nasceu quando você tinha um ano e um mês, morrendo oito meses
depois. Aliás, o nome Ana acompanhou-o pela vida afora. Sou inclinado mesmo a
imaginar que foi você, e não Breuer, quem sugeriu para Bertha Pappenheim, o
pseudônimo de Ana O..
Freud: — Eu...
Eu: — Deixe-me terminar. O sonho de Irma mostra claramente — embora você não
tenha publicado isso em sua interpretação do sonho — que você, no momento em
que o sonho ocorreu estava apreensivo com a possibilidade de haver engravidado
sua mulher e albergava desejos de assassinar sua possível cria. Sua mulher
estava, de fato, grávida à época do sonho e Ana foi o nome dado a filha que
nasceu (será excessivo especular que o nome foi escolhido por você?). Filha
que, certamente devido, pelo menos em parte, à relação que desenvolveu com o
pai, não casou nem teve filhos (alguma duvida de que, embora ela não tivesse
pênis, isso merece o nome de castração?) notabilizando-se, entretanto,
exatamente por sua dedicação profissional ao tratamento de crianças?
Freud: — Tudo isso me deixa muito surpreso, mas confesso que acabo de me
recordar de que...