sábado, outubro 20, 2007

COMO ESTRAGAR UM POEMA

Saído de um surto psicótico, um de meus pacientes mostrou-me o seguinte poema:

"Quando não mais existir
A angústia
Poderei calçar meus sapatos

Quando existir
O esforço necessário
Farei do contrário
O reforço de mim.

Quando ultrapassar
A verdade obscura
Saberei que fui eu
Quem escreveu o poema.

Quando atravesso
A verdade inesgotável
Refaço a mim mesmo
Como um caco de vidro.

Querem ver como uma interpretação psicanalítica do poema, não obstante o quanto correta, pode destruir toda sua força estética? É fácil:

"Quando não mais existir / A angústia / Poderei calçar meus sapatos" = quando eu me livrar da angústia que me paralisa, poderei seguir em frente na minha vida.

"Quando existir / O esforço necessário / Farei do contrário / O reforço de mim." = Quando eu tiver forças para seguir em frente, os obstáculos serão um estímulo para que eu busque o meu caminho.

"Quando ultrapassar / A verdade obscura / Saberei que fui eu / Quem escreveu o poema." = Quando eu puder encarar de frente a verdade de quem eu sou, poderei assumir que sou o sujeito de meus atos.

"Quando atravesso / A verdade inesgotável / Refaço a mim mesmo / Como um caco de vidro." = E quando reconheço o que sou, reconheço o quanto estou dilacerado.

Viram como uma interpretação psicanalítica pode tirar a graça de um poema?

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