Foi-me feito, via ORKUT, o seguinte QUESTIONAMENTO: "Boa noite, Luiz Cesar. Gostaria de saber a sua opinião sobre a humanização Hospitalar!!! Em relação a estudantes que tentam levar um pouco mais de alegria aos hospitais!!! Abraços."
RESPOSTA: No meu entender, já é hora, na esteira do trabalho de Elisabeth Kübler-Ross, de começar a se reconhecer que um paciente com câncer no fígado, não é UM FIGADO, mas, sim, uma PESSOA com câncer no fígado. Certos médicos têm tanta alergia a gente que, ao lhes dizer que você gostaria de fazer uma consulta porque está com, digamos, uma forte dor nos joelhos, se esses médicos pudéssem, responderiam: "Pois não! Por favor, envie-me, o mais rápido possível, seus joelhos por SEDEX e logo terá um retorno"! Reconhecendo a existência endêmica dessa alergia, algumas instituições ligadas à formação médica e ao exercício da medicina, já estão tomando algumas providências. A Universidade de Harvard, por exemplo, tornou LITERATURA uma cadeira OBRIGATÓRIA dos primeiros anos do currículo médico, currículo que, no que diz respeito a 'rapport', só tem sido satisfatório, até agora, para a formação de médicos legistas. Esse reconhecimento de que o paciente não é apenas um fígado, dois pulmões, dois rins, um estômago, dois joelhos etc., mas que esses órgãos e membros ESTÃO EM UMA PESSOA QUE SOFRE, já está começando - aleluia! - além disso, a abrir as portas dos hospitais e clínicas não só para estudantes, mas também para profissionais - aqui no Rio, por exemplo, um grupo profissional de palhaços vinha fazendo um trabalho voluntário no setor infantil de nosso Hospital do Câncer, produzindo significativo alívio na dor e, por vezes mesmo, trazendo progressos ao tratamento físico daqueles pequenos e sofridos pacientes. Esses profissionais e estudantes, como no exemplo que acabo de aduzir, não necessariamente têm que pertencer à área psi. Acho, contudo, que o contato com os pacientes de tais profissionais e estudantes deve ser supervisionado por um psicólogo, já que pessoas estranhas à nossa área, embora cheias de boas intenções, têm, por vezes, abordagens bastante canhestras em suas relações interpessoais, podendo "o tiro sair pela culatra".
domingo, março 12, 2006
quinta-feira, março 02, 2006
OS TRÊS DRAMAS
O homem da Antigüidade, o da Idade Média e o da Idade Moderna enfrentaram três diferentes dramas, todos passíveis de ser convertidos em tragédia.
O homem da Antigüidade pode decidir, mas não leva. Seu inimigo é o Destino. Édipo Rei é a mais famosa representação disso. O oráculo profetiza que Édipo está fadado a matar o pai e coabitar com a mãe. Édipo decide não fazê-lo e abandona a casa de quem pensa serem seus pais, no que se engana, pois havia sido adotado. Numa encruzilhada encontra Laio, que não sabe ser seu verdadeiro pai. Altercam-se. Laio é morto na refrega. Após algumas peripécias, casa com Jocasta, sua mãe, viúva de Laio. Decidiu, mas não levou.
O da Idade Média pode levar, mas não decide. Seu inimigo é o Pecado. A Divina Comédia é a mais exaltada representação disso. O homem que cai em pecado deverá enfrentar, para a eternidade, as agruras do inferno. Se mantém pureza, pode chegar ao céu, mas o que seja ou não pecado não é decidido por ele. Pode levar, mas não decide.
O da Idade Moderna pode decidir e levar, mas seu drama, embora solúvel, não é menor. Aqui também há que se enfrentar – e vencer – um inimigo: o estreitamento da consciência, o não querer ver. Hamlet é a mais acabada representação disso. O fantasma do pai do príncipe Hamlet denuncia a esse último que fora assassinado por Cláudio, irmão do morto. Hamlet não se debate com o Destino, nem com o Pecado, mas sim com a dor de expandir a própria consciência, reconhecendo a sórdida trama, de que participara sua mãe e devendo, por isso, executar a vingança que tal reconhecimento exigiria. Para uma leitura superficial, a peça gira em torno da morte do pai de Hamlet; para um olhar mais profundo, gira em torno do “ser ou não ser”, a vida ou morte, só possível após a Idade Moderna, do indivíduo completo, representado por Hamlet.
Será mera coincidência que, na peça, também Hamlet seja o nome do pai morto? Duvido.
O homem da Antigüidade pode decidir, mas não leva. Seu inimigo é o Destino. Édipo Rei é a mais famosa representação disso. O oráculo profetiza que Édipo está fadado a matar o pai e coabitar com a mãe. Édipo decide não fazê-lo e abandona a casa de quem pensa serem seus pais, no que se engana, pois havia sido adotado. Numa encruzilhada encontra Laio, que não sabe ser seu verdadeiro pai. Altercam-se. Laio é morto na refrega. Após algumas peripécias, casa com Jocasta, sua mãe, viúva de Laio. Decidiu, mas não levou.
O da Idade Média pode levar, mas não decide. Seu inimigo é o Pecado. A Divina Comédia é a mais exaltada representação disso. O homem que cai em pecado deverá enfrentar, para a eternidade, as agruras do inferno. Se mantém pureza, pode chegar ao céu, mas o que seja ou não pecado não é decidido por ele. Pode levar, mas não decide.
O da Idade Moderna pode decidir e levar, mas seu drama, embora solúvel, não é menor. Aqui também há que se enfrentar – e vencer – um inimigo: o estreitamento da consciência, o não querer ver. Hamlet é a mais acabada representação disso. O fantasma do pai do príncipe Hamlet denuncia a esse último que fora assassinado por Cláudio, irmão do morto. Hamlet não se debate com o Destino, nem com o Pecado, mas sim com a dor de expandir a própria consciência, reconhecendo a sórdida trama, de que participara sua mãe e devendo, por isso, executar a vingança que tal reconhecimento exigiria. Para uma leitura superficial, a peça gira em torno da morte do pai de Hamlet; para um olhar mais profundo, gira em torno do “ser ou não ser”, a vida ou morte, só possível após a Idade Moderna, do indivíduo completo, representado por Hamlet.
Será mera coincidência que, na peça, também Hamlet seja o nome do pai morto? Duvido.
terça-feira, fevereiro 28, 2006
LAICIDADE CONSTITUCIONAL
(Resposta a Thiago Balat, que me perguntou sobre a possibilidade de lhe fornecer algum material sobre “laicismo constitucional”, seja, a separação, estatuída pela Constituição de um Estado, entre esse último e a Igreja.)
Thiago, fui, durante muitos anos, professor em nível universitário. Para meu gosto, as melhores monografias não são uma mera “colcha de retalhos” de informações, mas organizam essas últimas segundo uma idéia rectora. Se eu fosse escolher uma para a sua, eu escolheria: “Quem tem medo, tem fé; quem não tem, tem crítica”. Pois bem: embora haja medos – em um paciente paranóico, por exemplo – de natureza delirante, sem qualquer base na realidade, via de regra o medo de um sujeito, de um grupo social ou de toda uma sociedade, varia de forma diretamente proporcional a sua sensação de impotência frente aos perigos que o ameaçam. Quando esse medo é maior, recorre-se à fé; quando menor, à critica. Por razões que poderemos posteriormente aprofundar, as últimas décadas da Idade Média presenciaram um aumento da sensação de potência no homem europeu que, como uma água que esquenta e, de repente, ferve, arrebentou no Renascimento, que deslocou o homem da ênfase de servir a Deus, para a ênfase em servir a si mesmo, deslocamento condensado na frase “o ser humano é a medida de todas as coisas”. Mas o Renascimento foi, sobretudo, o deslocamento da “meta” do empreendimento humano. Dois passos, não obstante, ainda seriam fundamentais, no processo ali iniciado, para que devidamente se estatuísse o novo “instrumento” a implementá-la.
O primeiro desses passos, separar “assuntos humanos” de “assuntos divinos”, teve nítida e vigorosa aparição em 1520, com a publicação de “DISCURSO À NOBREZA CRISTà DA NAÇÃO ALEMÔ, de Martinho Lutero, onde o autor defende que os assuntos humanos devem ser decididos mediante os ditames do “bom senso” e os divinos, segundo os da fé. Estava apontado o caminho para o Iluminismo[1]: mal fora enunciado esse “tratado de Tordesilhas epistemológico” entre “assuntos humanos” e “assuntos divinos” (tratado re-escrito, cem anos depois, por Descartes, como a distinção entre res cogitans e res extensa), e começam a espocar obras que são monumentos à aplicação da crítica, não da fé, à compreensão do mundo: Copérnico – De Revolutionibus Orbium Celestium (1543) – Vesalius – De Humani Corporis Fabrica (1543) – Gilbert – De Magnete Magneticisque Corporibus (1600) – Kepler – Astronomia Nova (1609) e Harmonices Mundi (1619) – Harvey – Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (1628) – Galileu – Dialogo ... Sopra i Due Massime Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano (1632) – Boyle – The Sceptical Chymist: or Chymico-Physical Doubts & Paradoxes (1661) – Newton – Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687). Essas obras-primas da razão humana prepararam o caminho para que fosse dado o segundo dos referidos passos (que, na verdade, já havia sido bem ensaiado por Francis Bacon, em seu Of the Proficiency and Advancement of Learning, Divine and Humane, de 1605): esse segundo passo foi o surgimento, ao longo do século XVIII, do que, em português, se convencionou chamar de Iluminismo (Em francês, por exemplo, “Illuminisme” significa algo bem diverso), que tratou, através de trabalhos como os de Bayle – Dictionaire Historique et Critique (1697) – Diderot – Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (1751-1772) – Voltaire – Dictionnaire Philosophique Portatif (1764) – e Kant – Kritik der reinen Vernunft (1781) – de polir as justificações filosóficas para o tipo de pensamento crítico que deram origem, durante os anos seiscentos, às obras primas que acabamos de listar. Enfim, trezentos anos depois de ter sido proposto, o Tratado de Tordesilhas epistemológico de Lutero já havia: (1) demonstrado a avassaladora capacidade produtiva do pensamento crítico e (2) encontrado fundamentação filosófica para esse último.
Em seu conjunto, o processo descrito acima pode ser assim resumido: (1) sucesso humano em lidar com o ambiente, produzindo bem-estar e riqueza, (2) aumento de auto-confiança e conseqüente diminuição do medo, (3) aumento de aplicação da atividade crítica – o que implica laicidade – às áreas cuja “compreensão” dependia anteriormente do recurso à autoridade e à fé. Chegamos ao problema da laicidade constitucional. É evidente que o abocanhamento pelo pensamento crítico, para sua análise, de áreas anteriormente dominadas pela fé foi resultado de uma luta de poder: as guerras religiosas que se seguiram à Reforma foram um sangrento testemunho disso. Ganhou a separação luterana entre “assuntos humanos” e “assuntos divinos”. Ora, como todo sistema jurídico não faz mais do que cristalizar, sob forma de lei, as relações de poder que tipificam um determinado momento histórico (outras explicações são blá, blá, blá), TAL PROCESSO TEVE COMO EPIFENÔMENO O APARECIMENTO DE CONSTITUIÇÕES QUE SEPARAVAM AS ESFERAS DE AÇÃO DA IGREJA E DO ESTADO.
É verdade que “quem nunca comeu melado, quando come se lambuza” e o Iluminismo ficou tão eufórico com o descobrimento do poder crítico da mente humana, que começou a fazer bobagens como a de, à época da Revolução Francesa, passearem pelas ruas de Paris uma estátua da Deusa Razão e, mais tarde, o anti-religioso Auguste Comte cometeu a insanidade de construir um Templo da Razão. Como dizia, Oscar Wilde: “os remédios dos homens acabam sempre contaminados pelas doenças que pretendem curar”.
Valeria acrescentar a tudo isso uma pitada de Haeckel, por sua afirmação de que todo processo evolutivo implica três elementos: crescimento, diferenciação e integração das partes diferenciadas. Mas isso fica para outro papo, inclusive porque Haeckel não conhecia os japoneses e passaria pelo perigo de concluir que, sendo a válvula maior do que o transistor e esse último do que o “chip”, a válvula era a mais “evoluída” dos três.
Em tempo: quando Freud, no fim do século XIX para o seguinte, resolveu aplicar à res cogitans o mesmo tipo de pensamento crítico que, marcadamente a partir de Copérnico e de Vesalius, passou a ser aplicar à res extensa, todas as forças anti-iluministas foram de novo mobilizadas para impedir esse novo avanço da razão. Como afirmou Galileu: “Acredito que não haja maior ódio, nesse mundo, do que o da ignorância em relação ao saber”.
[1] “There is ... some tendency among historians of the Western culture to use ‘Age of Reason’ for the seventeenth and eighteenth centuries together, and to confine ‘Enlightenment’ [ correspondente ingles do português “Iluminismo’ ] to the eighteenth century, when the characteristic ideas and attitudes of rationalism had spread from a small group of advanced thinkers to a relatively large educated public.” BRINTON, Crane. “Enlightenment”, in: EDWARDS, Paul (ed.). The Encyclopedia of Philosophy. New York: Macmillan, 1967.
Thiago, fui, durante muitos anos, professor em nível universitário. Para meu gosto, as melhores monografias não são uma mera “colcha de retalhos” de informações, mas organizam essas últimas segundo uma idéia rectora. Se eu fosse escolher uma para a sua, eu escolheria: “Quem tem medo, tem fé; quem não tem, tem crítica”. Pois bem: embora haja medos – em um paciente paranóico, por exemplo – de natureza delirante, sem qualquer base na realidade, via de regra o medo de um sujeito, de um grupo social ou de toda uma sociedade, varia de forma diretamente proporcional a sua sensação de impotência frente aos perigos que o ameaçam. Quando esse medo é maior, recorre-se à fé; quando menor, à critica. Por razões que poderemos posteriormente aprofundar, as últimas décadas da Idade Média presenciaram um aumento da sensação de potência no homem europeu que, como uma água que esquenta e, de repente, ferve, arrebentou no Renascimento, que deslocou o homem da ênfase de servir a Deus, para a ênfase em servir a si mesmo, deslocamento condensado na frase “o ser humano é a medida de todas as coisas”. Mas o Renascimento foi, sobretudo, o deslocamento da “meta” do empreendimento humano. Dois passos, não obstante, ainda seriam fundamentais, no processo ali iniciado, para que devidamente se estatuísse o novo “instrumento” a implementá-la.
O primeiro desses passos, separar “assuntos humanos” de “assuntos divinos”, teve nítida e vigorosa aparição em 1520, com a publicação de “DISCURSO À NOBREZA CRISTà DA NAÇÃO ALEMÔ, de Martinho Lutero, onde o autor defende que os assuntos humanos devem ser decididos mediante os ditames do “bom senso” e os divinos, segundo os da fé. Estava apontado o caminho para o Iluminismo[1]: mal fora enunciado esse “tratado de Tordesilhas epistemológico” entre “assuntos humanos” e “assuntos divinos” (tratado re-escrito, cem anos depois, por Descartes, como a distinção entre res cogitans e res extensa), e começam a espocar obras que são monumentos à aplicação da crítica, não da fé, à compreensão do mundo: Copérnico – De Revolutionibus Orbium Celestium (1543) – Vesalius – De Humani Corporis Fabrica (1543) – Gilbert – De Magnete Magneticisque Corporibus (1600) – Kepler – Astronomia Nova (1609) e Harmonices Mundi (1619) – Harvey – Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (1628) – Galileu – Dialogo ... Sopra i Due Massime Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano (1632) – Boyle – The Sceptical Chymist: or Chymico-Physical Doubts & Paradoxes (1661) – Newton – Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687). Essas obras-primas da razão humana prepararam o caminho para que fosse dado o segundo dos referidos passos (que, na verdade, já havia sido bem ensaiado por Francis Bacon, em seu Of the Proficiency and Advancement of Learning, Divine and Humane, de 1605): esse segundo passo foi o surgimento, ao longo do século XVIII, do que, em português, se convencionou chamar de Iluminismo (Em francês, por exemplo, “Illuminisme” significa algo bem diverso), que tratou, através de trabalhos como os de Bayle – Dictionaire Historique et Critique (1697) – Diderot – Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (1751-1772) – Voltaire – Dictionnaire Philosophique Portatif (1764) – e Kant – Kritik der reinen Vernunft (1781) – de polir as justificações filosóficas para o tipo de pensamento crítico que deram origem, durante os anos seiscentos, às obras primas que acabamos de listar. Enfim, trezentos anos depois de ter sido proposto, o Tratado de Tordesilhas epistemológico de Lutero já havia: (1) demonstrado a avassaladora capacidade produtiva do pensamento crítico e (2) encontrado fundamentação filosófica para esse último.
Em seu conjunto, o processo descrito acima pode ser assim resumido: (1) sucesso humano em lidar com o ambiente, produzindo bem-estar e riqueza, (2) aumento de auto-confiança e conseqüente diminuição do medo, (3) aumento de aplicação da atividade crítica – o que implica laicidade – às áreas cuja “compreensão” dependia anteriormente do recurso à autoridade e à fé. Chegamos ao problema da laicidade constitucional. É evidente que o abocanhamento pelo pensamento crítico, para sua análise, de áreas anteriormente dominadas pela fé foi resultado de uma luta de poder: as guerras religiosas que se seguiram à Reforma foram um sangrento testemunho disso. Ganhou a separação luterana entre “assuntos humanos” e “assuntos divinos”. Ora, como todo sistema jurídico não faz mais do que cristalizar, sob forma de lei, as relações de poder que tipificam um determinado momento histórico (outras explicações são blá, blá, blá), TAL PROCESSO TEVE COMO EPIFENÔMENO O APARECIMENTO DE CONSTITUIÇÕES QUE SEPARAVAM AS ESFERAS DE AÇÃO DA IGREJA E DO ESTADO.
É verdade que “quem nunca comeu melado, quando come se lambuza” e o Iluminismo ficou tão eufórico com o descobrimento do poder crítico da mente humana, que começou a fazer bobagens como a de, à época da Revolução Francesa, passearem pelas ruas de Paris uma estátua da Deusa Razão e, mais tarde, o anti-religioso Auguste Comte cometeu a insanidade de construir um Templo da Razão. Como dizia, Oscar Wilde: “os remédios dos homens acabam sempre contaminados pelas doenças que pretendem curar”.
Valeria acrescentar a tudo isso uma pitada de Haeckel, por sua afirmação de que todo processo evolutivo implica três elementos: crescimento, diferenciação e integração das partes diferenciadas. Mas isso fica para outro papo, inclusive porque Haeckel não conhecia os japoneses e passaria pelo perigo de concluir que, sendo a válvula maior do que o transistor e esse último do que o “chip”, a válvula era a mais “evoluída” dos três.
Em tempo: quando Freud, no fim do século XIX para o seguinte, resolveu aplicar à res cogitans o mesmo tipo de pensamento crítico que, marcadamente a partir de Copérnico e de Vesalius, passou a ser aplicar à res extensa, todas as forças anti-iluministas foram de novo mobilizadas para impedir esse novo avanço da razão. Como afirmou Galileu: “Acredito que não haja maior ódio, nesse mundo, do que o da ignorância em relação ao saber”.
[1] “There is ... some tendency among historians of the Western culture to use ‘Age of Reason’ for the seventeenth and eighteenth centuries together, and to confine ‘Enlightenment’ [ correspondente ingles do português “Iluminismo’ ] to the eighteenth century, when the characteristic ideas and attitudes of rationalism had spread from a small group of advanced thinkers to a relatively large educated public.” BRINTON, Crane. “Enlightenment”, in: EDWARDS, Paul (ed.). The Encyclopedia of Philosophy. New York: Macmillan, 1967.
domingo, janeiro 29, 2006
NOTAS FILOSÓFICAS (VIII): PLATÃO E A JUSTIÇA
Antes de nos debruçarmos sobre o conteúdo específico das teses de Platão sobre a justiça, vale considerar o papel que ele atribuía a essa última dentro de seu sistema de filosófico. Esse papel é único: na verdade, como acentua ABBAGNANO[1], se a sabedoria ocupa, dentro desse sistema, posição mais alta do que o mero saber, isso se deve a que só ela é considerada capaz de permitir a realização da justiça, considerada o fim último da práxis filosófica. RENÉ SÈVE reforça as considerações de ABBAGNANO: afirma que o fato de que “dans la tradition occidentale, l’approche la plus courante de la justice fait de celle-ci la vertu morale principale”[2] tem sua origem no Livro IV de A República, onde, ao estudar a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça – virtudes que, a partir de TOMÁS DE AQUINO, passarão a ser chamadas de “cardinais” – considera-se essa última como a verdadeira fonte de todas as outras e a causa de seu equilíbrio recíproco.
Posto o privilegiado lugar da justiça dentro do edifício teórico de Platão, vale detalhar algumas das teses principais desse último relativamente à natureza daquela, quais sejam:
1) A justiça ocorre em duas dimensões: a da relação de um indivíduo com os demais e a da relação de um indivíduo consigo mesmo;
2) Indivíduo Ideal é o indivíduo que mantém a justiça entre as partes que o compõem – a razão, a vontade e o desejo – sendo entendida essa justiça como a obediência do desejo à vontade e dessa última à razão;
3) O Estado Ideal é o estado que mantém a justiça na relação entre suas três classes – os sábios (= a razão), os militares (= a vontade) e os trabalhadores (= o desejo) – sendo entendida essa justiça como a obediência dos trabalhadores aos militares e a desses últimos aos sábios;
Se fôssemos esboçar algum tipo de crítica à visão platônica da justiça, começaríamos nossas considerações a partir dos comentários de GILBERT RYLE: “Just as in his political thinking Plato sometimes treats the working class as a deplorable necessity, so in his ethical thinking he is inclined to treat our impulses and desires in similar fashion.”[3] Como sustenta BERTRAND RUSSELL, em sua História da Filosofia Ocidental[4], a noção platônica de justiça parece adequar-se muito pouco à organização de um sistema político de natureza democrática.
[1] ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofía. México: Fondo de Cultura Económica, 1963, p. 917.
[2] JACOB, André (org.). Encyclopédie Philosophique Universelle. Paris: PUF, 1990, vol. I, p. 1046.
[3] EDWARDS, Paul (ed.). The Encyclopedia of Philosophy. New York: Macmillan, vol. VI, p. 330.
[4] RUSSELL, B. Op. cit., vol. I, p. 132-137, passim.
Posto o privilegiado lugar da justiça dentro do edifício teórico de Platão, vale detalhar algumas das teses principais desse último relativamente à natureza daquela, quais sejam:
1) A justiça ocorre em duas dimensões: a da relação de um indivíduo com os demais e a da relação de um indivíduo consigo mesmo;
2) Indivíduo Ideal é o indivíduo que mantém a justiça entre as partes que o compõem – a razão, a vontade e o desejo – sendo entendida essa justiça como a obediência do desejo à vontade e dessa última à razão;
3) O Estado Ideal é o estado que mantém a justiça na relação entre suas três classes – os sábios (= a razão), os militares (= a vontade) e os trabalhadores (= o desejo) – sendo entendida essa justiça como a obediência dos trabalhadores aos militares e a desses últimos aos sábios;
Se fôssemos esboçar algum tipo de crítica à visão platônica da justiça, começaríamos nossas considerações a partir dos comentários de GILBERT RYLE: “Just as in his political thinking Plato sometimes treats the working class as a deplorable necessity, so in his ethical thinking he is inclined to treat our impulses and desires in similar fashion.”[3] Como sustenta BERTRAND RUSSELL, em sua História da Filosofia Ocidental[4], a noção platônica de justiça parece adequar-se muito pouco à organização de um sistema político de natureza democrática.
[1] ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofía. México: Fondo de Cultura Económica, 1963, p. 917.
[2] JACOB, André (org.). Encyclopédie Philosophique Universelle. Paris: PUF, 1990, vol. I, p. 1046.
[3] EDWARDS, Paul (ed.). The Encyclopedia of Philosophy. New York: Macmillan, vol. VI, p. 330.
[4] RUSSELL, B. Op. cit., vol. I, p. 132-137, passim.
FATO ECONÔMICO E FATO POLÍTICO
FATO ECONÔMICO = df qualquer fato relativo à produção, à distribuição ou ao consumo de valores sujeitos à escassez.
FATO POLÍTICO = df qualquer fato relativo a relações de poder.
FATO POLÍTICO = df qualquer fato relativo a relações de poder.
sexta-feira, janeiro 13, 2006
NOTAS FILOSÓFICAS (VII): BELEZA
Perguntaram-me o que é "beleza". Gosto da definição de Federico Sciacca: "Beleza é expressão acabada", ou seja, temos a sensação de que algo é belo quando sentimos que o conteúdo encontrou sua forma. Por isso, um quadro como "Cronos Devorando seus Filhos", de Góia, que não é exatamente "bonito", pode ser "belo".
domingo, janeiro 01, 2006
VOTO DIDÁTICO
Meus amigos ficaram chocados quando, na última eleição presidencial, eu disse que ia votar no Lula. Conhecendo meu pessimismo em relação às esquerdas (aliás, também em relação às direitas), perguntaram-me por quê. Respondi que pela simples razão de que eu queria acabar com ele e com o PT e que, quando esses factóides de virtude política tomassem o poder, o Brasil, como disse Eduardo Giannotti da Fonseca, iria amadurecer politicamente "pela via do desencanto". P.S.: "SER" de esquerda, de direita ou de centro é tão estúpido quanto manter o volante de um veículo sempre numa mesma posição: é bem mais eficiente prestar atenção na disposição das ruas.
sábado, dezembro 31, 2005
ABUSO SEXUAL INFANTIL (II)
A parte honrosas exceções, minha mensagem sobre “ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA” produziu uma enxurrada de comentários e imeils me acusando de estar propagando a pedofilia e o abuso sexual de crianças, havendo, inclusive, quem me ameaçasse denunciar ao Conselho Regional de Psicologia.
Achei esse tipo de reação bastante instrutiva porque pôs às claras como é deficiente o nível de alfabetização em nosso país. Como, talvez, alguns desses semi-analfabetos tenham possibilidade de recuperação, vou repetir a essência do que eu disse de uma maneira mais palatável. Desculpem, “mais palatável” não vai dar para semi-analfabetos compreenderem: substituamos por “mais explicadinha”. Vamos lá.
Primeiro: um elemento essencial para o sucesso de uma relação terapêutica profunda é a neutralidade do analista;
Segundo: neutralidade, aqui, não significa “indiferença afetiva”, significa “capacidade de ouvir” qualquer tipo de fala proveniente do paciente: que quer matar a mãe, gosta de comer barata, de ter relações anais com porteiros e que adoraria se casar com o papa. Quem não é capaz de ter essa amplitude de escuta, não deveria ser psicanalista, deveria lavar roupa, ser alpinista, ornintólogo ou quejandos.
Terceiro: se comer barata, casar com o papa etc. é um interdito moral, ético, cultural, jurídico são assuntos relevantes, mas não para justificar a SURDEZ de um terapeuta ou de outros profissionais que trabalham com seres humanos;
Quarto: em quarenta anos de prática clínica, recebi vários pacientes que não conseguiram se livrar de seus sintomas em terapias anteriores porque quem os atendeu era SURDO para o fato de que esses pacientes, em sua infância, tinham TIDO PRAZER nos jogos sexuais que mantiveram com adultos;
Quinto: quando encontraram um terapeuta suficientemente pouco preconceituoso e hipócrita para, com neutralidade, ouvi-los falar sobre esse prazer, desembaraçaram-se de seus sintomas.
Sexto: o dito acima não implica fazer propaganda de pedofilia nem de que se abuse sexualmente de criancinhas. Fui mais palatável? Ou, em respeito aos semi-analfabetos, “mais explicadinho”?
Achei esse tipo de reação bastante instrutiva porque pôs às claras como é deficiente o nível de alfabetização em nosso país. Como, talvez, alguns desses semi-analfabetos tenham possibilidade de recuperação, vou repetir a essência do que eu disse de uma maneira mais palatável. Desculpem, “mais palatável” não vai dar para semi-analfabetos compreenderem: substituamos por “mais explicadinha”. Vamos lá.
Primeiro: um elemento essencial para o sucesso de uma relação terapêutica profunda é a neutralidade do analista;
Segundo: neutralidade, aqui, não significa “indiferença afetiva”, significa “capacidade de ouvir” qualquer tipo de fala proveniente do paciente: que quer matar a mãe, gosta de comer barata, de ter relações anais com porteiros e que adoraria se casar com o papa. Quem não é capaz de ter essa amplitude de escuta, não deveria ser psicanalista, deveria lavar roupa, ser alpinista, ornintólogo ou quejandos.
Terceiro: se comer barata, casar com o papa etc. é um interdito moral, ético, cultural, jurídico são assuntos relevantes, mas não para justificar a SURDEZ de um terapeuta ou de outros profissionais que trabalham com seres humanos;
Quarto: em quarenta anos de prática clínica, recebi vários pacientes que não conseguiram se livrar de seus sintomas em terapias anteriores porque quem os atendeu era SURDO para o fato de que esses pacientes, em sua infância, tinham TIDO PRAZER nos jogos sexuais que mantiveram com adultos;
Quinto: quando encontraram um terapeuta suficientemente pouco preconceituoso e hipócrita para, com neutralidade, ouvi-los falar sobre esse prazer, desembaraçaram-se de seus sintomas.
Sexto: o dito acima não implica fazer propaganda de pedofilia nem de que se abuse sexualmente de criancinhas. Fui mais palatável? Ou, em respeito aos semi-analfabetos, “mais explicadinho”?
terça-feira, dezembro 13, 2005
ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA
Há uma absurda quantidade de preconceitos e de hipocrisia na maneira com que a maior parte do “establishment” lida com a questão do chamado “abuso sexual na infância”. Tenho suficiente experiência clínica – atuando há cerca de quarenta anos não só como psicoterapeuta como enquanto supervisor de outros psicoterapeutas – para estar absolutamente convencido de que a maioria esmagadora dos que lidam com a matéria – familiares, juristas, psico-coisas (psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas,.psicanalistas et caterva), assistentes sociais etc. não são capazes de diferenciar os dois grandes sub-conjuntos de episódios que compõem o que se convencionou chamar de “abuso sexual na infância”. Tal experiência ensinou-me simplesmente o seguinte: se nos aproximamos do tema de maneira suficientemente isenta, descobriremos não só o tipo de abuso universalmente reconhecido – aquele em que a criança é a real vítima de uma arremetida sexual desagradável, desrespeitosa e violenta – como também o praticamente não reconhecido em que a abordagem sexual de um adulto em relação a uma criança foi, para essa última, agradável, respeitosa e gentil. Creio ser suficientemente neutro em minha avaliação dos fatos, para que várias pacientes me tenham relatado que foram, em sua infância, sexualmente abordadas por adultos e que, embora obrigadas pelas circunstâncias a manter segredo (o que é suficiente para produzir fixação e trauma, como exponho em meu livro “A Nova Conversa”), adoraram isso! Algumas dessas pacientes (e, por agora, estou deixando os meninos de lado), chegaram a me relatar que tinham aqueles momentos como um oásis de prazer e de carinho dentro de um contexto em que se sentiam de todo abandonadas. Pelo menos duas dessas pacientes relataram como, ao ser bolinadas – uma pelo tio, outra pelo pai – ficavam ansiando pela penetração do pênis em suas vaginas. Uma jamais externou esse desejo a seu “abusador”; a outra pediu explicitamente ao pai que a penetrasse, o que o deixou em pânico, parando de sexualmente abordá-la. Agora, reflitamos um pouco, aproveitando, para análise, a experiência da primeira. Descobriram que o tio a bolinava. O escândalo foi absoluto e o tio foi execrado, enquanto todos os familiares descreviam a menina como “coitada”, “coitada”, “coitada” (imagino que a maioria de meus leitores saibam que o termo “coitado” vem de “coito”)! Alguém acredita que, em tais circunstâncias, uma criança de 10 anos tivesse condições psicológicas para declarar: — “Pessoal, eu não sou nenhuma vítima! Eu estava gostando! Só fiquei chateada porque ele não teve coragem de enfiar o pau dele em mim!”? Um pouco difícil, não? Tal declaração, quando chega a acontecer, só pode ser feita, via de regra muitos anos depois, a um psicólogo que não seja preconceituoso nem hipócrita!
quinta-feira, dezembro 08, 2005
LOGANALISE E A CULTURA DO BEM-ESTAR
Impressiona-me como é pouco explorada, na literatura das chamadas Ciências Humanas a gritante relação entre: (a) o aparecimento da Psicanálise (b) a gradual mudança da natureza da cultura, marcante a partir do séc. XIX e (c) o contínuo aumento, nos últimos quinhentos mil anos, da expectativa de vida do gênero humano sobre este conturbado planeta. Então, vejamos:
A expectativa média de vida do Homo Erectus, o mais antigo representante de nosso gênero, era de cerca de quinze anos; seu descendente, o Homo Sapiens, podia, na Grécia Clássica, esperar viver vinte e cinco; na Europa do século XVIII, trinta e cinco; na do século XX, setenta. Levamos quinhentos mil anos para elevar a expectativa de vida de quinze para vinte e cinco anos; dois mil anos para alçá-la de vinte e cinco a trinta e cinco; duzentos, para promovê-la de trinta e cinco a setenta!
Se levamos em conta que esse aumento de nossa expectativa de vida foi obtida através de uma cultura,-- chamá-la-ei de cultura de sobrevivência — cuja tarefa maior foi proteger o organismo humano de suas causae mortis,-- sede, fome, calamidades naturais, doenças, etc. — mas que, mesmo protegido desses agentes letais, o corpo humano tem uma obsolescência natural, que ocorre após algo mais do que cem anos de vida, veremos que, entre todos os séculos, o século XIX — que, como unidade histórica merece ser visto estendendo-se da Revolução Francesa (1789) ao fim da Segunda Guerra Mundial (1945) —ocupa um lugar especial. É um verdadeiro divisor de águas, um turning point antropológico: século nenhum, antes ou depois dele, terá presenciado a expectativa de vida do ser humano dar salto maior na direção daquele ponto em que deixar de viver é um estágio natural da própria vida.
Esse estrondoso aumento da expectativa de vida ocorrido em torno à "charneira antropológica" representada pelo século XIX gerou uma profunda alteração na natureza da cultura: já sabemos, em boa medida, nos manter vivos até os limites permitidos por nossa própria natureza... Mas, em nos mantendo vivos, sabemos viver bem?
Para que isso ocorra, ao lado da tecnologia de uma cultura de sobrevivência, cumpre, inexoravelmente, que se desenvolva a tecnologia de uma cultura de bem-estar.
Parece-me, por vezes, que poucos se dão conta de que a Psicanálise,-- significativamente surgida no turning point do século XIX — representa a primeira grande tentativa de se produzir uma tal tecnologia e de como essa tentativa, representante de um novo tipo de cultura, abastardou-se nos entrechoques com o tipo de cultura que a precedeu.
O grande abastardamento ocorreu, coerentemente, sobre a maior contribuição de seu fundador, Sigmund Freud, para a construção dessa nova cultura, uma cultura que, garantida a sobrevivência, começa a ocupar-se do prazer.
Essa contribuição maior pode ser resumida em uma única frase — "Repressão causa neurose" —- e, se desejamos de fato construir essa nova cultura, é essencial que entendamos não só porque essa contribuição é "maior", mas também, como foi abastardada.
No que diz respeito à doença mental, "psicose" é a preocupação básica de uma cultura de sobrevivência; "neurose", a de uma cultura de bem-estar. Isto porque a psicose, muito mais do que a neurose, atinge o sujeito de uma forma que põe em risco sua vida e a dos demais. A neurose, muito mais facilmente do que aquela, pode ser compatível com a manutenção da vida, embora, claramente, interfira sobre o usufruto de seu prazer. Conseqüentemente, a psiquiatria do séc. XVIII ocupava-se, centralmente, da psicose, ameaça à sobrevivência, enquanto Freud, em pleno século XIX, desloca a atenção da psiquiatria para a neurose, ameaça ao prazer, revelando-se como representante da nova ordem cultural.
Focada a neurose, grande problema para uma cultura de bem-estar, o criador da Psicanálise identifica a sua causa: a repressão. E aqui vem o abastardamento, iniciado pelo próprio Freud (que, na verdade, era um produto híbrido dos dois tipos de cultura em pauta) e completado ao longo dos cem anos de história da Psicanálise.
O abastardamento — que tem impedido, até hoje, que a Psicanálise cumpra sua função de dar solidez a essa nova cultura — se fez em torno de substituir-se o conceito de repressão como recalque pelo conceito de repressão como contenção. Explico-me:
Recalque é um mecanismo psicológico que impede que um determinado sujeito dê às suas experiências internas — sensações, emoções, desejos, etc. — acesso à expressão verbal. Recalcar um sujeito, portanto, é impedir que ele represente verbalmente suas reações internas, por exemplo, a uma limitação de sua ação.
Contenção é o impedimento a que um sujeito execute uma ação não verbal.
Ora, a afirmação legitimamente psicanalítica é a de que recalque — seja, impedir que um sujeito expresse verbalmente seus estados psicológicos — gera neurose. Na medida em que — mormente através do contato com a mentalidade essencialmente behaviorista dos Estados Unidos — passou-se a entender repressão como sinônimo de contenção — seja, bloqueio de uma ação não verbal — conseguiu-se neutralizar toda a utilidade da fórmula psicanalítica original e, de passagem, destruir-se a imagem da Psicanálise, sufocando-se na origem seu imenso potencial como um poderoso instrumento de política sanitária.
Sustentada popularmente por uma pseudo-Psicanálise, a absurda proposta de que não contenhamos uns aos outros para evitarmos a criação de neuróticos, não só é imprópria para que se evite a geração de neuróticos: ela é maquiavelicamente eficaz na produção de uma multidão infindável de toxicômanos e psicopatas.
Algumas tribos primitivas, em tempos de paz, sem outras ameaças e em vista da simplicidade de sua organização econômica e social, vivem como iguais, sem qualquer hierarquia; mas, em tempos de guerra ou de outras calamidades, elegem um chefe — o chefe-da-guerra — a que todos os demais devem obediência e submissão. Com efeito, a cultura de sobrevivência, própria às condições em que existe grande ameaça à vida, tende a estruturar-se como uma sociedade de chefes absolutos que comandam uma massa de súditos uniformizada e sem grande direito à auto-expressão (= sub-ditos); a cultura de bem-estar, própria às situações de menor perigo, tende a estruturar-se como democracia, em que indivíduos bastante diferenciados são senhores de seu próprio discurso, embora aceitando limites cabíveis para sua liberdade de ação.
O sucesso da cultura de sobrevivência em, após quinhentos mil anos de lutas, quintuplicar a expectativa de vida do organismo humano sobre este planeta, levando-a ao limite do que seria sua obsolescência natural, permitiu, caracterizadamente durante o século XIX, o brotar de uma nova cultura, a cultura do bem-estar, sendo a Psicanálise o primeiro instrumento científico adequado para a implementação e suporte dessa nova cultura.
Entretanto, para que ela possa cumprir o seu papel, é necessário que a entendamos como uma Loganálise, uma libertação do discurso — da voz e do voto, como na melhor contribuição do século XIX para as instituições políticas — e não como uma proposta behaviorista, que vê como instrumento de saúde uma liberdade de ação que só pode caracterizar a lamentável anarquia de uma sociedade sem leis.
Esta Psicanálise essencialmente loganalítica é a única capaz de dar fundamento a uma nova filosofia para literatura de auto-ajuda, até agora absolutamente monopolizada por variações que se pretendem modernas da velhíssima “psicologia do pensamento positivo”, perfeita para os parâmetros de uma cultura de sobrevivência, mas absolutamente inadequada para os da cultura de bem-estar cujos caminhos, felizmente, já começamos a percorrer.
A expectativa média de vida do Homo Erectus, o mais antigo representante de nosso gênero, era de cerca de quinze anos; seu descendente, o Homo Sapiens, podia, na Grécia Clássica, esperar viver vinte e cinco; na Europa do século XVIII, trinta e cinco; na do século XX, setenta. Levamos quinhentos mil anos para elevar a expectativa de vida de quinze para vinte e cinco anos; dois mil anos para alçá-la de vinte e cinco a trinta e cinco; duzentos, para promovê-la de trinta e cinco a setenta!
Se levamos em conta que esse aumento de nossa expectativa de vida foi obtida através de uma cultura,-- chamá-la-ei de cultura de sobrevivência — cuja tarefa maior foi proteger o organismo humano de suas causae mortis,-- sede, fome, calamidades naturais, doenças, etc. — mas que, mesmo protegido desses agentes letais, o corpo humano tem uma obsolescência natural, que ocorre após algo mais do que cem anos de vida, veremos que, entre todos os séculos, o século XIX — que, como unidade histórica merece ser visto estendendo-se da Revolução Francesa (1789) ao fim da Segunda Guerra Mundial (1945) —ocupa um lugar especial. É um verdadeiro divisor de águas, um turning point antropológico: século nenhum, antes ou depois dele, terá presenciado a expectativa de vida do ser humano dar salto maior na direção daquele ponto em que deixar de viver é um estágio natural da própria vida.
Esse estrondoso aumento da expectativa de vida ocorrido em torno à "charneira antropológica" representada pelo século XIX gerou uma profunda alteração na natureza da cultura: já sabemos, em boa medida, nos manter vivos até os limites permitidos por nossa própria natureza... Mas, em nos mantendo vivos, sabemos viver bem?
Para que isso ocorra, ao lado da tecnologia de uma cultura de sobrevivência, cumpre, inexoravelmente, que se desenvolva a tecnologia de uma cultura de bem-estar.
Parece-me, por vezes, que poucos se dão conta de que a Psicanálise,-- significativamente surgida no turning point do século XIX — representa a primeira grande tentativa de se produzir uma tal tecnologia e de como essa tentativa, representante de um novo tipo de cultura, abastardou-se nos entrechoques com o tipo de cultura que a precedeu.
O grande abastardamento ocorreu, coerentemente, sobre a maior contribuição de seu fundador, Sigmund Freud, para a construção dessa nova cultura, uma cultura que, garantida a sobrevivência, começa a ocupar-se do prazer.
Essa contribuição maior pode ser resumida em uma única frase — "Repressão causa neurose" —- e, se desejamos de fato construir essa nova cultura, é essencial que entendamos não só porque essa contribuição é "maior", mas também, como foi abastardada.
No que diz respeito à doença mental, "psicose" é a preocupação básica de uma cultura de sobrevivência; "neurose", a de uma cultura de bem-estar. Isto porque a psicose, muito mais do que a neurose, atinge o sujeito de uma forma que põe em risco sua vida e a dos demais. A neurose, muito mais facilmente do que aquela, pode ser compatível com a manutenção da vida, embora, claramente, interfira sobre o usufruto de seu prazer. Conseqüentemente, a psiquiatria do séc. XVIII ocupava-se, centralmente, da psicose, ameaça à sobrevivência, enquanto Freud, em pleno século XIX, desloca a atenção da psiquiatria para a neurose, ameaça ao prazer, revelando-se como representante da nova ordem cultural.
Focada a neurose, grande problema para uma cultura de bem-estar, o criador da Psicanálise identifica a sua causa: a repressão. E aqui vem o abastardamento, iniciado pelo próprio Freud (que, na verdade, era um produto híbrido dos dois tipos de cultura em pauta) e completado ao longo dos cem anos de história da Psicanálise.
O abastardamento — que tem impedido, até hoje, que a Psicanálise cumpra sua função de dar solidez a essa nova cultura — se fez em torno de substituir-se o conceito de repressão como recalque pelo conceito de repressão como contenção. Explico-me:
Recalque é um mecanismo psicológico que impede que um determinado sujeito dê às suas experiências internas — sensações, emoções, desejos, etc. — acesso à expressão verbal. Recalcar um sujeito, portanto, é impedir que ele represente verbalmente suas reações internas, por exemplo, a uma limitação de sua ação.
Contenção é o impedimento a que um sujeito execute uma ação não verbal.
Ora, a afirmação legitimamente psicanalítica é a de que recalque — seja, impedir que um sujeito expresse verbalmente seus estados psicológicos — gera neurose. Na medida em que — mormente através do contato com a mentalidade essencialmente behaviorista dos Estados Unidos — passou-se a entender repressão como sinônimo de contenção — seja, bloqueio de uma ação não verbal — conseguiu-se neutralizar toda a utilidade da fórmula psicanalítica original e, de passagem, destruir-se a imagem da Psicanálise, sufocando-se na origem seu imenso potencial como um poderoso instrumento de política sanitária.
Sustentada popularmente por uma pseudo-Psicanálise, a absurda proposta de que não contenhamos uns aos outros para evitarmos a criação de neuróticos, não só é imprópria para que se evite a geração de neuróticos: ela é maquiavelicamente eficaz na produção de uma multidão infindável de toxicômanos e psicopatas.
Algumas tribos primitivas, em tempos de paz, sem outras ameaças e em vista da simplicidade de sua organização econômica e social, vivem como iguais, sem qualquer hierarquia; mas, em tempos de guerra ou de outras calamidades, elegem um chefe — o chefe-da-guerra — a que todos os demais devem obediência e submissão. Com efeito, a cultura de sobrevivência, própria às condições em que existe grande ameaça à vida, tende a estruturar-se como uma sociedade de chefes absolutos que comandam uma massa de súditos uniformizada e sem grande direito à auto-expressão (= sub-ditos); a cultura de bem-estar, própria às situações de menor perigo, tende a estruturar-se como democracia, em que indivíduos bastante diferenciados são senhores de seu próprio discurso, embora aceitando limites cabíveis para sua liberdade de ação.
O sucesso da cultura de sobrevivência em, após quinhentos mil anos de lutas, quintuplicar a expectativa de vida do organismo humano sobre este planeta, levando-a ao limite do que seria sua obsolescência natural, permitiu, caracterizadamente durante o século XIX, o brotar de uma nova cultura, a cultura do bem-estar, sendo a Psicanálise o primeiro instrumento científico adequado para a implementação e suporte dessa nova cultura.
Entretanto, para que ela possa cumprir o seu papel, é necessário que a entendamos como uma Loganálise, uma libertação do discurso — da voz e do voto, como na melhor contribuição do século XIX para as instituições políticas — e não como uma proposta behaviorista, que vê como instrumento de saúde uma liberdade de ação que só pode caracterizar a lamentável anarquia de uma sociedade sem leis.
Esta Psicanálise essencialmente loganalítica é a única capaz de dar fundamento a uma nova filosofia para literatura de auto-ajuda, até agora absolutamente monopolizada por variações que se pretendem modernas da velhíssima “psicologia do pensamento positivo”, perfeita para os parâmetros de uma cultura de sobrevivência, mas absolutamente inadequada para os da cultura de bem-estar cujos caminhos, felizmente, já começamos a percorrer.
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