sexta-feira, março 28, 2008

A IDENTIDADE "BRASILEIRA"

Perguntaram-me sobre o que eu acho sobre a identidade dos brasileiros. Respondi o que segue:

"A minha conjectura é a de que, infelizmente,

CONTINUAMOS "BRASILEIROS".

É o que eram os "brasileiros"? Eram os estrangeiros que vinham para estas terras para depredá-las, pondo abaixo o pau-brasil, para vendê-lo na Europa, enricar, e ficar lá, ou voltar apenas para depredar outra vez.
Como legítimos "brasileiros", sugamos as riquezas desta terra e, em vez de, enricados, doar o resultado disso, como fazem os estadunidenses, para universidades, fundações, museus etc., depositamos o resultado disso em paraísos fiscais...
E por que isso?
Porque nossa "Independência" não foi um ato de ruptura sangrenta, como ocorreu nos EUA, com os representantes da metrópole que nos dominava.
Foi, com o grito do Ipiranga, uma mera "internalização" dessa camarilha, que continuou a mesma, a mandar igual e impor tributos ao restante da população colonizada que, antes colonizada "de fora", passou a sê-lo "de dentro". Ou será por outra razão que o Banco Mundial sinaliza o Brasil como apresentando a mais injusta distribuição de renda do planeta?
Nossas elites continuam sendo "brasileiras", no sentido de serem estrangeiros que pretendem depredar o país e voltar para a Europa.
Os prédios mais vazios de Ipanema estão na Vieira Souto: os colonizadores estão nas "metrópoles", só vêm aqui de passagem.
Freqüentes vezes, vi mais amor por esta terra em imigrantes que "vieram para ficar" do que em "brasileiros", que parecem estar aqui de passagem, pensando e sentindo que suas verdadeiras pátrias estão lá fora.
Isso atinge nossa relação com a lei. O que existe de mais patriótico, para um colonizado, do que burlar a lei que representa os interesses da metrópole? O que mais patriótico do que revoltar-se, como os estadunidenses, contra o imposto imposto sobre o chá? O que mais patriótico do que esculpir "santos de pau oco" para "passar a perna" na metrópole que nos impunha o quinto do ouro?
Só que os ingleses foram expulsos dos EUA, e, expulsos eles, deixou de ser patriótico burlar a lei, já que, a partir de então, essa lei era a dos donos
do novo estado. Aqui? Aqui, nossa "independência" foi patrocinada pelos colonizadores e por seus comparsas, continuando a ser "patriótico" burlar a lei, que, "de dentro", continuava a sugar tanto os nativos, quanto, antes, sugara "de fora".
As camarilhas governamentais que, ainda hoje, impõe absurda carga fiscal sobre os que trabalham em nosso país, não passam de "colonizadores internalizados", e se, inconscientemente que seja, continuamos a nos sentir colonizados, continuamos com a maior naturalidade a burlar a lei, que não vemos como feita por nós nem para nós, empregando nossa criatividade para produzir todas as variações de "santos de pau oco" que nosso contexto atual permite inventar. Essa leniência relativamente ao descumprimento da lei termina por desservir aqueles mesmos que as descumprem.
Precisamos de uma guerra de independência 'sui generis': uma guerra de independência contra os "colonizadores internalizados" que governam este país. Uma forma de fazer isso são atos de "desobediência civil", como a recusa de pagar IPTU efetivada por algumas comunidades do Rio de Janeiro.
Ganha essa guerra, aí sim, poderemos ter uma identidade, não de colonizados, mas de cidadãos.

A SATANIZAÇÃO DO CAPITAL

A última mensagem que recebi, tentando "satanizar" o capital, dizia, entre outras coisas, o seguinte:

"OS CAPITAIS, QUE ADORAM CRESCER SEM FAZER FORÇA"...

Estou de acordo com Eric Maskin, último prêmio Nobel de Economia, que insiste que os que trabalham com essa ciência deveriam entender um pouco mais de Psicologia.
Pensemos um pouco: qual o ser vivo, ou grupo deles, humanos ou não, que NÃO GOSTA de "crescer sem fazer força"? Só o capital? Ridículo. E, se o contexto internacional permite que se cresça sem fazer força, qual a boa razão para que, para crescer, força seja feita?
Aposto que, quem escreveu isso, não tem capital. Caso tivesse, estaria, em vez de reclamando, ganhando dinheiro sem fazer força.
Nada como um pouco de Psicologia acoplada à Economia.
Com efeito, como vulgarmente se diz, inveja é uma merda.

sexta-feira, março 07, 2008

ESQUERDAS E DIREITAS

Quando fiz algumas observações sobre a recente auto-defenestração oficial de Castro - e como castrou! - ouvi de um interlocutor: "Uma das maiores figuras do último século!"
Respondi: "Estou de absoluto acordo. Ele lembra-me, inclusive, algumas "grandes mães" que com quem lidei em meu labor clínico (sou psicanalista). Elas mantêm seus filhos eternamente juntos a suas saias (nada de ir para Maiami ou para as prais e hotéis freqüentados pelos gringos), pensando e decidindo por eles o que é "melhor" para eles, dizendo a que trabalho devem dedicar-se e com quem devem casar, e, como a de um de meus pacientes, entrando porta a dentro no quarto do filho, na noite de Lua-de-Mel, para saber se "estava tudo indo bem".

Com efeito, se, como disse Millôr, "toda super-mãe cria infra-filhos", cabe parafraseá-lo dizendo que "todo super-estado cria infra-cidadãos"!

O "pecado" das esquerdas - como o das "direitas" - não é econômico, é psicológico: as primeiras têm por objetivo manter no berço e amamentar quem já poderia estar no mercado, enfrentando riscos em busca do lucro, e as segundas o de tratar como adultos capazes competir mesmo aqueles que a quem a sociedade ainda não deu as condições mínimas para que possam fazê-lo.

Políticas de esquerda ou de direita não deveriam ser "premissas" ou "princípios". Deviam ser "estratégias", ambas igualmente válidas, a serem aplicadas segundo exigências conjunturais.

Quando me perguntam se sou de esquerda ou de direita, respondo que sou inteligente.

segunda-feira, março 03, 2008

QUEIJOS E VINHOS...

Em uma sofisticada degustação de queijos e vinhos, um dos comensais, sabendo ser eu psicanalista, provocou-me: "Esse negócio de psicanálise é frescura!"
Pareceu não ter gostado de minha réplica: "Champanhe francesa também. Por que você está aqui e não no bar em frente, tomando uma cachaça vagabunda? Ou você resolveu aplicar a sua vida um critério menos exigente do que aplica ao que bebe?"

sábado, fevereiro 23, 2008

PENSAMENTO ANIMAL E PENSAMENTO HUMANO

Inútil ter acesso aos mais relevantes e precisos dados, se é ruim a qualidade da teoria com a qual se os vai trabalhar. Há uma piadinha que retrata isso de modo bem caricato:

PEDRO – “Caramba, você sabe estar estatisticamente comprovado que 30% por cento dos acidentes de trânsito ocorrem em virtude de o motorista estar alcoolizado!”
PAULO – “Caramba mesmo! Não tinha idéia de que 70% dos acidentes pudessem ser causados pela FALTA DE ÁLCOOL!”

Pois é. Não há input de dados, por relevantes e corretos que sejam, que resista a um sofware ruim.
Os dados sobre o pensamento animal trazidos pelo artigo “Mentes que Brilham”, publicado na revista National Geographic (Brasil) correspondente a março deste ano são indiscutivelmente relevantes e supõe-se estarem corretos, mas o software com o qual se os trabalha merece significativos reparos, sem os quais se podem concluir barbaridades análogas à de que não beber causa acidentes de tráfego.
Esses reparos voltam-se principalmente sobre a má conceituação de cognição, pensamento (animal e humano) e inteligência – e passo a alinhá-los, embora não pretenda aprofundar esta discussão aqui. Na página 36 da revista, lê-se:

“De que modo, então, um cientista prova que um animal tem capacidade de pensar – ou seja, que ele é capaz de obter informações a respeito do mundo e agir em função disso?” (grifo meu)

Começamos mal. Se uma planta, ao crescer, se inclina para oeste porque, onde se encontra, o vento bate naquele sentido, o processo é meramente mecânico; mas se, na ausência de tal agente externo, ela se orienta para oeste porque, sendo fototrópica, é dali que recebe mais luz, então sim, ela “obteve informações a respeito do mundo e agiu em função disso”, o que supõe presença de “cognição”, mas, convenhamos, não de “pensamento”. Poderíamos dizer que essa planta “cognosceu” – como “cognosce” nossa medula ao responder com o reflexo patelar a uma pequena martelada no joelho – mas acho difícil encontrar alguém disposto a sustentar que ela – e tampouco a medula – “pensaram”. E por quê?
Porque, para haver “pensamento”, não basta ser capaz de registrar uma informação e ser capaz de reagir a ela. Para haver pensamento, é necessário que, a partir de informações previamente registradas (= “cognoscidas”), se produza informação nova, seja a partir de inferência (“se X, então Y”), seja a partir da criatividade.
Para o contexto do artigo, vale também lembrar que o adjetivo “inteligente” pode ser empregado em um sentido lato, em que coincide com “capaz de pensar” e em um sentido estrito, quando coincide com “capaz de pensar bem”, ou seja, de forma a servir adequadamente às tarefas a que se aplica o pensar.
Por último, sustento que nenhum cotejamento entre o pensamento humano e o animal poderá ser bem sucedido enquanto, como faz o artigo em pauta, se procurarem semelhanças e diferenças entre ambos em aspectos como capacidade ou não de simbolizar, de generalizar, de inferir, de criar etc..
A única diferença fundamental entre ambos está em que apenas o primeiro é capaz de voltar-se sobre si mesmo e pensar sobre o pensamento, tentando analisar sua própria natureza e desenvolver os critérios que distinguem o bom do mau pensar.
No dia em que um animal ultrapassar essa barreira, terá deixado de sê-lo.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

ECONOMIA POLÍTICA: DEFINIÇÃO.

Não satisfeito com as definições de Economia Política com que me defrontei, sugiro o seguinte, ficando a espera de críticas e sugestões. Se podemos definir:

1) FATO ECONÔMICO como "todo aquele que diz respeito à produção, distribuição e consumo de valores sujeitos à escassez"; e

2) FATO POLÍTICO como "todo aquele que diz respeito a relações de poder"; então

3) ECONOMIA POLÍTICA pode ser definida como "a ciência que se ocupa das interrelações entre, por um lado, as relações de poder e, por outro, a produção, distribuição e consumo de valores sujeitos à escassez".

domingo, novembro 25, 2007

SINCRONICIDADE

Foi solicitado, em minha comunidade Orkut, que eu desse minha opinião sobre o conceito de SINCRONICIDADE, se possível de um ponto de vista não místico, mas científico.

Minha primeira aproximação do problema seria a seguinte: só considero científicas afirmações que passíveis de ser lógica e/ou empiricamente DESCONFIRMÁVEIS.

Como não consigo imaginar nenhuma operação lógica e tampouco nenhuma verificação empírica capazes de REFUTAR a hipótese da sincronicidade, considero essa hipótese simplesmente como ESTRANHA AO CAMPO DA CIÊNCIA.

sábado, outubro 20, 2007

COMO ESTRAGAR UM POEMA

Saído de um surto psicótico, um de meus pacientes mostrou-me o seguinte poema:

"Quando não mais existir
A angústia
Poderei calçar meus sapatos

Quando existir
O esforço necessário
Farei do contrário
O reforço de mim.

Quando ultrapassar
A verdade obscura
Saberei que fui eu
Quem escreveu o poema.

Quando atravesso
A verdade inesgotável
Refaço a mim mesmo
Como um caco de vidro.

Querem ver como uma interpretação psicanalítica do poema, não obstante o quanto correta, pode destruir toda sua força estética? É fácil:

"Quando não mais existir / A angústia / Poderei calçar meus sapatos" = quando eu me livrar da angústia que me paralisa, poderei seguir em frente na minha vida.

"Quando existir / O esforço necessário / Farei do contrário / O reforço de mim." = Quando eu tiver forças para seguir em frente, os obstáculos serão um estímulo para que eu busque o meu caminho.

"Quando ultrapassar / A verdade obscura / Saberei que fui eu / Quem escreveu o poema." = Quando eu puder encarar de frente a verdade de quem eu sou, poderei assumir que sou o sujeito de meus atos.

"Quando atravesso / A verdade inesgotável / Refaço a mim mesmo / Como um caco de vidro." = E quando reconheço o que sou, reconheço o quanto estou dilacerado.

Viram como uma interpretação psicanalítica pode tirar a graça de um poema?

quarta-feira, outubro 10, 2007

FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS DA DEMOCRACIA

Fundamentos Psicológicos da Democracia


Causa espécie, mas existe um fato candidato à posição de o mais significativo, dentre todos, para a história humana. O fato a que me refiro é a assombrosa ACELERAÇÃO DA EXPECTATIVA de vida ocorrida nos últimos duzentos anos.
Se causa espécie podermos apontar um único fato como o mais importante, entre todos, para o humano, mais espécie causa ainda quão pouco esse fato tem sido aproveitado para a compreensão das viscerais transformações ocorridas, por conta dele, na natureza da cultura.
Com o fito de preencher essa lacuna, lancemos mão de uma lei psicológica, tão inescapável quanto qualquer lei da Física, qual seja: “Redução de ameaça gera descentralização dos processos decisórios”. Certas coletividades primitivas, que só elegem chefe, e a ele obedecem, em situação de guerra, são o exemplo mais gritante dessa lei.
Ora, o salto, em duzentos anos, nos países chamados desenvolvidos, de uma expectativa de vida de trinta e cinco anos (século XVIII) para uma de mais de setenta (século XX), queiram ou não os profetas do caos, implica, de forma inescapavelmente concreta, uma redução radical e inédita do nível de ameaça a que está concretamente sujeito o indivíduo humano, o que, segundo a lei psicológica supra-exposta, nos levaria a prever a ocorrência de uma maciça descentralização dos processos políticos ao longo do período em pauta.
Com efeito, se observarmos os anos que medeiam duas datas de inegável carga simbólica – 1789, Queda da Bastilha, e 1989, Queda do Muro – período que, por representar um verdadeiro “turning-point” antropológico, chamarei de “Os Grandes Duzentos” – veremos que, antes deles, eram regra as autocracias, hereditárias ou ideológicas, e, depois deles, as democracias, republicanas ou não.
A relação entre medo e centralização decisória é – de forma ora mais, ora menos, consciente – parte do conhecimento psicológico de todos nós. Qualquer ditador sabe como seus propósitos centralizadores são favorecidos pelo perigo e, se esse último cai por demais, ocupa-se imediatamente de tentar reintroduzi-lo, como recurso para se perpetuar no poder. Episódios de nossa história, como o da bomba no Rio-Centro e a igualmente frustrada tentativa de explodir o gasômetro, são exemplos disso e até o inocente papai ou mamãe que acena ao filho com o “bicho-papão” não está mais do que operando a partir de iguais premissas e propósitos.
Ocorre, no entanto, que, a parte as tentativas dos autocratas de manter um nível de perigo que os sustente no poder, a própria descentralização, operada sem obediência a certas condições, é capaz de re-introduzir o perigo, provocando novo ciclo centralizador: alegres “porres” democráticos são, freqüentemente, patrocinadores de tristes “ressacas” reacionárias e o exemplo mais próximo e exuberante disso foi o período de conservadorismo político-ideológico que se fez seguir ao clímax libertário de 68. De forma lamentavelmente irônica, os Charles De Gaulle e os Richard Nixon, são eternos beneficiários dos Jimmie Hendrix e das Jane Joplin...
Mas retornemos à linha básica de nossa argumentação. Se nenhum cataclismo planetário nos remeter globalmente de volta a níveis de expectativa de vida anteriores ao dos Grandes Duzentos, podemos, amparados na lei psicológica supramencionada, prever que o PROCESSO DESCENTRALIZADOR (1) veio para ficar e (2) está longe de se haver completado. Isso posto, seria de indiscutível bom alvitre que (3) tivéssemos clareza sobre quais são as condições necessárias para que essa transição possa ocorrer da maneira o menos dolorosa possível e que (4) alguma teoria nos ensinasse o que deve ser feito para que essas condições sejam preenchidas.
Quanto às condições necessárias para que o inevitável processo de descentralização apresente uma boa relação custo-benefício, elas, na verdade, resumem-se a uma só: se parcelas anteriormente centralizadas de poder decisório estão e continuarão sendo, cada vez mais, distribuídas pela massa dos indivíduos que compõem cada sociedade, a condição de sucesso dessa descentralização é a elevação da qualidade da capacidade decisória desses indivíduos.
Estabelecida a condição, cumpre, contudo, saber implementá-la. Temos, no armazém das ciências humanas, alguma teoria que nos oriente sobre como fazê-lo? Bem, teríamos... “Teríamos”? Somos, aqui, remetidos a um velho e bom dito de Oscar Wilde: “Os remédios dos homens são contaminados pelas próprias doenças que pretendem curar”. A teoria capaz de nos oferecer suporte científico para patrocinar um desdobramento azeitado do processo de descentralização foi gerada no coração dos Grandes Duzentos, período em que a luta entre forças centralizadoras e descentralizadoras chegou a seu ápice. Assim sendo, essa teoria terminou por tornar-se vítima do próprio processo antropológico-cultural que a gestou: a divulgação de suas descobertas foi de tal forma distorcida que ela se tornou inútil, quando não deletéria, para administrar a transição descentralizadora. Examinemos isso:
A doença mental é, em sua essência, uma disfunção dos processos decisórios. Se o sucesso da democracia depende do bom funcionamento desses processos, é rasteiro exercício dedutivo concluir que os regimes políticos descentralizados, como garantia de sua própria sobrevivência, devem ter como meta prioritária o combate à doença mental, a maior corruptora dos processos psicológicos de que devem se alimentar tais regimes. Essa afirmação exige ser qualificada.
As sociedades anteriores aos Grandes Duzentos – e todas aquelas que, ainda hoje, apresentam expectativas de vida características daquela época – organizam-se de acordo com o que chamei de “culturas de sobrevivência”: culturas politicamente centralizadas, aguerridas e, conseqüentemente, dominadas pelo macho, marginalizadoras do fraco, exaltadoras do sacrifício e da obediência. As posteriores àquele período – e que conseguiram duplicar, ou quase, sua expectativa de vida – começaram a organizar-se de acordo com a matriz antropológica a que denominei de “culturas de bem-estar”: politicamente descentralizadas, cooperativas, integradoras do feminino e do desvalido, valorizadoras da autonomia e do prazer.
Por que a Psiquiatria do século XVIII, manifesta expressão de uma “cultura de sobrevivência”, volta-se para a psicose e mal se interessa pela neurose, enquanto a do século XX – posterior à “pororoca antropológica” a que me venho referindo e fruto dos primeiros passos de uma “cultura de bem-estar” – reconhece a importância dessa última? A resposta é simples: a disfunção psicótica é suficientemente grave para perturbar até a função psicologicamente primária de reproduzir e obedecer, alto valor para uma “cultura de sobrevivência”, enquanto o neurótico, razoavelmente capaz de desempenhar tal função primária, apresenta principalmente atingidas a qualidade de sua autonomia decisória e a sua capacidade de ser feliz, traços centralmente relevantes apenas para sociedades que ascenderam a uma “cultura de bem-estar”. Disse, acima, que “teríamos” uma teoria capaz de nos oferecer suporte científico para patrocinar um desdobramento azeitado do processo de descentralização. Já nos encontramos aparelhados para desvendar esse “teríamos”.
Produto típico do divisor-de-águas antropológico representado pelos Grandes Duzentos e operacionalizadora da “Umwertung aller Werte” (transmutação de todos os valores) que havia sido trovejada por Nietzsche, a Psicanálise anunciou, bem a meio daquele período, sua descoberta essencial: repressão causa neurose. Ora, sendo a neurose a mais universalmente difundida causa de perturbação dos processos decisórios, essa teoria deveria ter servido para orientar as políticas de saúde com o objetivo de alçar o nível de capacidade decisória da população. E serviu? Não. Por quê? Por que, como sugerimos acima, o conceito de repressão foi, ao ultrapassar os limites do meio profissional onde foi gerado (e, em certa medida, mesmo dentro dele), de tal forma distorcido que se tornou inútil para cumprir a tarefa a que, por vocação, se destinava.
Com efeito, todo – sublinhem-se que eu disse todo – o cidadão comum (e alguns profissionais) a quem, até hoje, perguntei o que era “repressão”, “reprimir”, “reprimido”, etc. responderam-me com alguma variação da afirmativa de que reprimir é “impedir que alguém faça algo que está querendo fazer”. Esse tipo de compreensão, aplicado à afirmação freudiana – supostamente científica e, portanto, supostamente útil – de que “repressão causa neurose”, transforma-a na gloriosa asneira de afirmar que, para que uma pessoa não fique neurótica, é necessário que se permita a ela fazer o que bem entende. Não é difícil prever que uma política de saúde mental assentada sobre tal compreensão deformada do conceito nos levaria, fatalmente, a múltiplos e orgásticos 68s, a múltiplos e lamentáveis óbitos por overdose e a múltiplos – e não de todo injustificados! – governos conservadores, por reação. Como é de conhecimento público, essa desastrosa distorção do mais fundamental dos conceitos psicanalíticos já deu fundamento a pedagogias que transformaram crianças em pequenos monstros e a tratamentos pseudopsicanalíticos que confundiram saúde com falta de educação. Quando não pior...
Deixemos isto claro: permitir, na área psicológica, que repressão seja entendida – como vem sendo até agora – com “não poder fazer” é algo tão criminoso quanto seria, na área médica, permitir à população confundir micróbios com vitaminas. Faz-se mister que os profissionais da área da saúde mental iniciem uma ação concertada e sistemática para reparar a inércia com que têm aturado tal destruição da mais importante descoberta psicológica do século XIX. Todo “blá-blá-blá” atual relativamente à crise da Psicanálise nos seria poupado, se se entendesse que a verdadeira raiz dessa crise é a insidiosa degradação do conceito de repressão, que, corretamente entendida, nada mais é do que a impossibilidade de expressarmos verbalmente o impacto que os estímulos internos e externos tem sobre nós.
A restrição da representação de nossa experiência em nível verbal acaba produzindo uma restrição de nossa inteligência, o que fatalmente atinge a qualidade de nossos processos decisórios. Dessa disfunção decisória, através de mecanismos psicológicos bem definidos, nascem todos os outros sintomas da neurose: obsessões, compulsões, fobias, conversões, etc., etc..
A liberação da palavra, contudo, também tem suas regras, mas regras suficientemente claras e simples para poderem ser postas ao alcance da população de forma a permitir que a Psicanálise saia dos consultórios e atinja seu verdadeiro objetivo, que é o de ser um agente catalisador do processo democrático, micro e macropoliticamente. Até o momento em que isso ocorra, a população, ávida de orientar-se em um mundo em que as regras de conduta não mais se resolvem por “tábuas da lei”, continuará a entupir-se de uma literatura de auto-ajuda dividida entre uma Psicologia do Faz-de-Conta que nos propõe acreditarmos estar bem, quando estamos mal, e uma Psicanálise interpretativo-masturbatória, que tudo explica, mas pouco soluciona.

quinta-feira, setembro 06, 2007

Profissão: PSICÓLOGO.

O número 20 da revista PSIQUE, atualmente nas bancas, traz matéria intitulada "Profissão: Psicólogo". Dada o grande potencial de utilidade das informações ali contidas para os que pensam em abraçar essa profissão, passo a destacar, por etapas, as mais relevantes dentre elas, comentando algumas e acrescentando mais uma ou outra, não abordadas ali.
1) Em sua introdução, o artigo - cujos dados foram fornecidos pela NOTISA, uma agência de pesquisa e que seria mais bem intitulado de "Profissão: PsicólogA" - lembra que "a maioria dos alunos (80%) que ingressa na faculdade de Psicologia é mulher, jovem, tem renda familiar média e é solteira". Posso acrescentar que, quando, em 1968, me transferi da então UEG (hoje UFRJ) para a PUC, os raros estudantes de sexo masculino entre aquela multidão de mulheres eram mal vistos pelos alunos de outras áreas (um tantinho de inveja devia fazer parte disso). Lembro-me de um estudante de engenharia me provocando com o comentário de que um sujeito de sexo masculino fazendo Psicologia era "padre ou veado". Como eu não era nem uma coisa nem outra, arranjei várias namoradas. Talvez seja uma vantagem adicional para os rapazes que pretendem ingressar na área...[Sobre o assunto, vale lembrar o que diz o artigo, "Em Forma", de Valéria França publicado na revista VEJA (Ano 30, n. 40, 8 de outubro de l997. p. 17): “A Faculdade de Medicina de Baylor, nos Estados Unidos, descobriu que a abstinência sexual temporária do homem eleva a concentração de espermatozóides portadores do cromossomo X. Quando isso acontece, um casal tem mais chances de gerar um menino. Se o homem tiver relações sexuais diárias, há mais probabilidade de nascer uma menina.” Do que se infere: se as condições ambientais forem de guerra, em que o homem fica pouco em casa, nascem mais meninos; se forem de paz, em que ele está mais em casa, nascem mais meninas". Meninos servem para a guerra, meninas para a paz! Acho que todos esses dados apontam para o papel que a Psicologia irá desempenhar no futuro desse nosso conturbado planeta.]

2) Segue o artigo: "Outra característica que chama a atenção é o despreparo, ou a falta de informação sobre a carreira." Este dado merecerá meu comentário adiante.

3) Logo a frente, cita um comentário de Ana Mercês Bock, atual presidente do Conselho Federal de Psicologia: "Uma outra característica do psicólogo é que há muita adesão a sua escolha profissional, o que é percebido no fato de os cursos terem um baixo índice de evasão e de inadimplência". Isso aponta para algo alvissareiro: a profissão deve trazer significativas satisfações além da financeira, sobre a qual logo nos voltaremos. Ana Bock acrescenta: "as pessoas gostam do que fazem, querem fazer isso e, depois de formadas têm grande empenho para exercer a profissão. Por isso, grande parte dos psicólogos está exercendo a Psicologia, mesmo que, às vezes, por poucas horas, ou até como voluntários". Tal colocação merece importante reparo. Onde diz, "grande parte dos psicólogos", deveria estar dito "grande parte dAs psicólogAs". Isso altera em muito a análise da questão. Devido a funções que exerço e que exerci, tenho e tive acesso às condições de trabalho de várias centenas - esse número não é uma metáfora! - de psicólogas. Embora esses meus contatos confirmem o prazer que derivam de sua atividade profissional, há outro fator que exerce grande peso - possivelmente determinante - para que grande número delas a exerça "part time", como um "bico" ou em termos de voluntariado, qual seja: a imensa maioria é casada, sendo seus companheiros a fonte principal da renda familiar. Rara vez - ou nenhuma - vi uma psicóloga que só contasse com proventos oriundos de seu próprio trabalho dar-se ao luxo de exercê-lo apenas "part time".