quinta-feira, outubro 06, 2005

SOBERANIA

O conceito de “soberania” – palavra derivada do latim superanus ( = “poder supremo”) –como todos os demais conceitos – de Estado, de governo, de democracia etc. – que possuem uma essencial correlação com o de “poder”, tem sua compreensão significativamente alterada segundo o contexto político em que se encontra. O avançado em 1576 por Jean Bodin, por exemplo, tinha por escopo dar fundamento ideológico à cruzada centralizadora da coroa de França; o associado à teoria contralualista de Locke (fim do século XVII) e Rousseau (séc. XVIII) – e assumido pela constituição americana (1776) – tinha, em consonância com o espírito desse tempo, o objetivo de deslocar a titularidade da soberania para o povo; já o consagrado na constituição francesa de 1791, pretendia adicionar a esse deslocamento de titularidade a indivisibilidade ( = “nenhum grupo pode atribuir soberania a si próprio nem pode um indivíduo arrogá-la para si mesmo”, reza a famosa carta), inalienabilidade e imprescritibilidade dessa soberania, não obstante, em sua origem, tal soberania tivesse sido supostamente outorgada.
Também modificaram-se, ao longo do tempo, as posições ideológicas relativas ao imediato executor e guardião da soberania, fosse qual fosse o seu titular. No século XIX, o jurista inglês John Austin investia o Parlamento daquele papel, mas, não muito depois, do outro lado do Atlântico, a Suprema Corte dos Estados Unidos contestou essa hegemonia parlamentar ao lutar com sucesso por seu direito de invalidar leis ao considerá-las inconstitucionais. Tal percurso, entretanto, em vez de atribuir ao Judiciário a supremacia arrancada ao Legislativo, terminou por atribuí-la não mais a determinado segmento do Estado, mas, sim, às Cartas Magnas que os ordenam: as Constituições. Essas, por sua vez, ao incluir cláusulas que especificam as condições em que podem ser modificadas, reconhecem ser externa a elas a titularidade da soberania que corporificam...
No século XX, tais vicissitudes históricas levaram alguns autores (Léon Duguy, Hugo Krabbe, Harold Laski etc.) a sustentar que a soberania, vítima dos ventos políticos que agitam interna e externamente cada Estado, continuamente se desloca, dentro e fora deles, o que implica a negação das características de indivisibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade que a carta francesa de 91 lhe outorgara.
Vale acentuar que foi no relativo à sua dimensão externa, seja, correspondente às relações de Estados independentes entre si, que a teoria e a prática da soberania sofreu, nos últimos cem anos, suas principais mudanças, essencialmente no que diz respeito às suas limitações. A direção em que essa mudança deveria ocorrer já transparece no seguinte trecho de Kant, retirado do seu A Ciência do Direito:
“(1) Os Estados ... em suas relações externas – como selvagens sem lei – encontram-se naturalmente em uma condição não jurídica; (2) Essa condição natural é um estado de guerra em que o direito do mais forte prevalece”, mas logo afirma que essa condição “é errada por si mesma” e acrescenta que (3) “Uma aliança de nações, acorde com a idéia de um contrato social original, é necessário para proteger cada uma delas contra agressões e ataques externos, sem que isso envolva interferência em suas internas dificultades e litígios” (Parte II, inc. 54).
Pouco mais de cem anos após haverem sido escritas essas linhas e as Conferências de Haia realizadas em 1899 e em1907 dão uma primeira forma ao processo que, na Carta das Nações Unidas, datada de 1945, materializa explicitamente a disposição internacional de tornar concretas as recomendações de Kant, afirmando que todos os Estados-Membros daquela entidade “deverão resolver suas disputas internacionais por meios pacíficos, de tal maneira que a paz, segurança e justiça não sejam prejudicadas” (Cap. I, art. 2, inc. 3)
Nossos tempos, portanto, já não mais aprovam a “soberania” sem peias, mesmo nas relações internacionais. Eventos recentes como a recente invasão do Iraque insistem, entretanto, em nos relembrar da enorme distância que pode se interpor entre a existência de um ordenamento e o cumprimento a ele. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2003

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