segunda-feira, outubro 24, 2005

NOTAS FILOSÓFICAS (V): O LEITO DE PROCUSTO

Segundo uma lenda da antiga Grécia, havia um bandoleiro, chamado Procusto, que, após haver assaltado um viandante, colocava-o sobre um leito de ferro e, caso sua vítima fosse maior do que o leito, cortava o que sobrava, caso fosse menor do que ele, "esticava-o". Os filósofos da ciência - creio que do Círculo de Viena - passaram, no início do século XX, a usar a expressão "leito de Procusto" para caracterizar aquele tipo de pensador que, embora se pretendesse cientista, não suportava dados que não se adequassem a suas teorias, "cortando" os que "sobravam" e "esticando" os que "precisavam de uma ajuda". É interessante a reação da maior parte dos astrônomos à Astrologia. Há uma esmagadora quantidade de dados - estatisticamente comprovados - que demonstram a veracidade de uma plêiade de hipóteses astrológicas. Frente a esses dados, aqueles astrônomos, em vez de irem para casa chorar, porque suas teorias não dão conta desses dados, afirmam que esses dados não existem! E pretendem ser cientistas! Heil Procusto!

quinta-feira, outubro 20, 2005

SI VIS PACEM, PARA BELLUM

É necessário que sejamos objetivos em relação ao desarmamento. Comecemos por atentar para as terríveis consequências de termos uma população armada: a Suíça é um dos países mais armados do mundo (2 milhões de armas para uma população de 7 milhões de pessoas); as ocorrências de crime por arma de fogo são tão baixas que nem sequer têm valor estatístico (0,6 homicídios por cada 100 mil habitantes).
Nos Estados Unidos, onde há quase uma arma por habitante, o índice de crimes violentos caiu pela metade nos últimos dez anos. O Rio Grande do Sul tem a população mais armada de nosso país - uma arma para cada dez habitantes - e possui uma de nossas menores taxas de homicídio (12 para cada 100 mil habitantes, contra 29 para cada 100 mil no Brasil como um todo).

Agora, vejamos o quanto é importante, para reduzir a violência, desarmar uma população: na Inglaterra, a posse e a venda de armas de calibre superior a 22mm estão proibidas desde 1997; desde então, o número de homicídios aumentou 25% e o de roubos, 20%.

Na Jamaica, a posse por civis de qualquer tipo de arma de fogo ou munição foi proibida desde 1974: o índice de criminalidade continua sendo um dos mais altos do mundo (31 pessoas para cada 100 mil).

Na Austrália, desde 1996, a venda armas automáticas e semi-automáticas está proibida e restringiu-se a concessão de porte de arma: em nada se alterou o índice de criminalidade.

Agora, consideremos a situação no Brasil. Nosso país produz cerca de 200 mil armas por ano; exporta 70% delas; 20% vão para as Forças Armadas; dos 10% restantes - 20 mil armas - aproximadamente 17 mil (cerca de 90%) são adquiridas por empresas de segurança e apenas 3 mil são compradas por pessoas comuns para uso particular.

Pois bem, apoiado no improvável pressuposto de que, no Brasil como um todo, as coisas se passem de forma diversa do que no Rio Grande do Sul, na Suíça, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Jamaica e na Austrália, nosso erário está gastando aproximadamente R$ 300 milhões para preocupar-se com o destino dessas 3 mil armas! E isso não com uma população de 7 milhões de pessoas, como a da Suíça, mas com uma população de 180 milhões de pessoas e que se vê anualmente acrescida de cerca de 10 milhões.

Agora, consideremos Nova York, lugar do mundo em que, numa década, o índice de crimes violentos caiu vertiginosamente. Há pouca dúvida em relação a que o principal fator para tal foi o feroz combate, liderado pelo prefeito Rudolph Giuliani, contra a incompetência e a corrupção policial (de passagem, enquanto nossa polícia esclarece a autoria de um delito, a polícia norte-americana esclarece nove e a britânica 14).

Tudo que foi dito acima nos leva mais uma vez a lamentável conclusão de que vivemos sob a batuta de um governo que, por incompetência ou inapetência, em vez de tomar providências concretas para resolver problemas reais, prefere alocar esforços e recursos financeiros em pirotecnias marqueteiras (que, ao que parece, são fontes privilegiadas do caixa dois petista) para encantar os tolos.

Vide o Fome Zero, vide a defesa da importância de haver um assento brasileiro vitalício no Conselho de Segurança da ONU (passando, entre outras coisas, pelo ridículo e comercialmente prejudicial papel de avalizar, frente a OMC, a hipócrita pretensão da China de ser reconhecida como uma economia de mercado) e vide, agora, a proposta de redução da violência em nosso território (uma violência de nível quase jamaicano: apresentamos o invejável índice de 29 homicídios por cada 100 mil habitantes), não pelo saneamento de nossas forças policiais, mas pelo desarmamento da população civil! Com efeito, vivemos em um circo político onde os palhaços são a platéia.

Para terminar: ouvi, de moradora de uma de nossas favelas, a seguinte pérola: "Doutor, os traficantes lá da favela ficam-se rindo todos quando aparecem aqueles tratores passando em cima de uma porção de armas. E dizem: "Metade daquilo é arma de plástico. As melhores, eles vendem de volta para nós!""

Se for verdade, o que não duvido, esse "detalhe" compõe de forma perfeita o quadro e indica que o "desarmamento" já começou seu serviço: desarmar a população ordeira e renovar o arsenal bélico dos marginais!

Ah, tem outra pérola: segundo essa informante, os traficantes também afirmam que boa parte da "cocaína" queimada é sal! E com a cocaína que foi substituída por sal, o que será que acontece? Segundo esses mesmos traficantes, nossos queridos policiais traficam-na!

Antes do referendo de outubro, perguntemo-nos, portanto: para diminuir a violência, precisamos da ficção de que faremos isso ao negar o acesso a ridículas 3 mil armas aos quase 180 milhões de pessoas que compõem a população ordeira, ou precisamos de um governo disposto a acabar com a corrupção e incompetência de nossa polícia, em vez de um governo que vive de alimentar-se e de tentar alimentar o brasileiro de fantasias?

E a tarefa do povo? A tarefa do povo qual seria? A A TAREFA DO POVO É A DE, como fez Veríssimo - e sem nenhuma arma de fogo - MATAR A VELHINHA DE TAUBATÉ! Milhões e milhões de velhinhas de Taubaté! Aliás, que grande Taubaté é esse nosso Brasil!

Ah, si vis pacem, para bellum significa "se queres a paz, prepara-te para a guerra".

domingo, outubro 16, 2005

NOTAS FILOSÓFICAS (IV): OS CRITÉRIOS DE "VERDADE".

Os critérios empregados pelo ser humano para decidir se algo é ou não verdadeiro são dois: (a) a NITIDEZ E INTENSIDADE da experiência e (b) a COERÊNCIA.
Serve de exemplo para o primeiro caso a experiência de alguém cujo pai já morreu e acorda de um sonho, exclamando: - “Caramba! Sonhei que estava em um restaurante, conversando com meu pai. Era nítido COMO SE FOSSE VERDADE!”
Para o segundo caso, não há melhor exemplo do que o fenômeno denominado pela nosografia psiquiátrica de pseudo-alucinação. Nesse caso, o sujeito chega à consulta dizendo: - “Doutor, eu tenho ouvido a voz de meu pai conversando comigo! Isso é um absurdo, estou ficando maluco: ele já morreu!” Aqui, a INTENSIDADE E NITIDEZ da experiência alucinatória está tendo seu valor de verdade contestado em virtude de sua INCOERÊNCIA com outras informações, todas essas COERENTES com “morte do pai”.
É óbvio que a religião tende a empregar o primeiro desses critérios para decidir o que é verdadeiro e o que é falso — o moto credo quia absurdum é famoso testemunho disso — e a ciência, a empregar o segundo. Se a INTENSIDADE E NITIDEZ de uma experiência mística é suficiente para convencer alguém da existência de deus, a NITIDEZ E A INTENSIDADE com que se vê o Sol girar em torno da terra ao percorrer o firmamento em nada abala a teoria científica do heliocentrismo, embora deva ser notado que, nas ciências formais — lógica e matemática etc. — a COERÊNCIA exigida se refere, apenas, a proposições, enquanto, nas ciências empíricas, exige-se coerência (a) das proposições entre si e (b) entre tais proposições e os fatos empíricos.
Quanto ao INTERESSE do ser humano no problema da verdade, ele se origina, evidentemente, do fato de que, se penso ser VERDADEIRO que a padaria, que fecha às 22hs está aberta, porque ainda são 21hs30min e, ao chegar lá, lembro-me de que começou o horário de verão, pouco interessa que o verdadeiro e o falso não sejam absolutos, mas dependam das premissas a partir de que se teoriza: o que interessa aqui é que as do padeiro eram diferentes das minhas...

sábado, outubro 15, 2005

IMPOSTURAS INTELECTUAIS

O livro "Imposturas Intelectuais", publicado na França, em 1997, por Alan Sokal e Jean Bricmont, nasceu de um artigo do primeiro – “Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação” – publicado, em 96, em Edição Especial da revista americana “Social Text”. O artigo alinhava um amontoado de besteiras, mas... elas eram deliberadas! A intenção de seu autor, professor de Física da Universidade de Nova Iorque, era demonstrar como os chamados “cientistas culturais” eram capazes de engolir – e dar destaque! – a sandices como, por exemplo, a de que “o pi de Euclides e o G de Newton, antigamente imaginados como constantes e universais, são agora entendidos em sua inelutável historicidade”, bastando, para isso, que essas sandices estivessem cunhadas em termos pertencentes às chamadas ciências exatas. Logo denunciou à imprensa o que fizera. A repercussão alcançou dimensões planetárias: foi parar na primeira página do New York Time, do International Herald Tribune, do Observer, do Le Monde etc. A artimanha de Sokal – pôr a nu, frente ao mundo acadêmico, a incompetência, desonestidade e impostura intelectuais que haviam tomado de assalto a área das chamadas ciências sociais – tivera sucesso. O autor foi além: juntou-se a Bricmont, professor de Física da faculdade de Louvain, e meteram-se, no livro supra-mencionado, a demonstrar que, na obra de determinados autores – nomeadamente: Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigary, Bruno Latour, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio – que a desonestidade apontada não era um raro deslize, ocorrido aqui ou ali, mas uma prática sistemática objetivando dar áurea de rigor e de profundidade a teses mirabolantes e sem fundamento, ou fundamentadas, mas banais. Tentando atenuar a gravidade da denuncia, Maggiori (Journal Libération) afirmou estarem-se corrigindo “erros gramaticais em cartas de amor”. Esqueceu-se de dizer que as “cartas de amor” foram vendidas ao público como tratados de gramática!

sexta-feira, outubro 07, 2005

NOTAS FILOSÓFICAS (IV): ESTEREÓTIPO E PRECONCEITO

Não vejo que as pessoas se preocupem muito em fazer a diferença - que é conceitualmente fundamental - entre "estereótipo" e "preconceito". Estereótipo é um termo adequadamente empregado no sentido de uma expectativa, perfeitamente razoável, baseada em dados estatísticos anteriormente obtidos. Por exemplo, esperar-se, no Brasil,que um negro seja pouco letrado e tenha baixa renda, é perfeitamente compreensível, dada a forma em que as riquezas, materiais ou não, são distribuídas neste país; mas se, ao vermos um negro jantantando no Le Saint Honoré e, depois, saindo de BMW do restaurante, estivermos convictos de que ele roubou a carteira e o carro de alguém, aí, amigos, não é estereótipo, é preconceito, e faz uma baita diferença!

NOTAS FILOSÓFICAS (III): O QUE É FILOSOFIA?

Antropologia e História revelam que, desde os albores de sua existência, o ser humano demonstra anseios pelo verdadeiro, pelo bom e pelo belo. Nota-se, contudo, que, em certo ponto da história do pensamento humano – ponto que, na cultura ocidental, pode ser situado por volta do fim do século VII a.C – tal busca apresenta uma derivação fundamental. Insurgindo-se contra a determinação do verdadeiro, do bom e do belo por uma tradição – essencialmente mítica e religiosa – nascem os fiéis de uma nova crença: a de que todo o indivíduo humano é capaz de, mediante reflexão crítica, decidir por si e para si o que é verdadeiro, o que é belo e o que é bom, submetendo a esse juízo crítico inclusive – talvez principalmente – o que lhe oferece a mencionada tradição. Como postura, a filosofia se identifica com a disposição de questionar.
Até o século XVII, todas as produções intelectuais derivadas dessa postura – fossem elas conclusões sobre o movimento dos astros ou sobre a conduta humana ideal – eram incluídas sob o rótulo de filosofia. Nesse especial sentido, Galileu, ao rejeitar, pela força de seu raciocínio, o geocentrismo bíblico estava sendo tão filósofo quanto Sócrates, fundado em idênticos meios, rejeitou a oferta de seus amigos para que fugisse da cicuta.
A partir de Galileu, entretanto, os resultados da aplicação da postura filosófica aos vários setores de investigação humana passaram lentamente a ser arrolados como pertencentes aos diversos ramos do que hoje chamamos de ciência: a matemática, a física, a química, a biologia etc., de forma que, conforme o uso atual, a Filosofia recobre essencialmente os resultados da “postura crítica” às indagações voltadas:
(a) Sobre as condições de validade do conhecimento; e
(b) Sobre a utilização do conhecimento assim validado na orientação ética e estética da vida humana.
Sem os resultados da primeira dessas indagações, a ciência ficaria sem os fundamentos de sua própria validação; sem os da segunda, o homem não seria o dono de seus próprios atos, mas simples marionete do acaso ou mero escravo da tradição.

NOTAS FILOSÓFICAS (II): PLATÃO E A JUSTIÇA

PLATÃO E A JUSTIÇA
Luís César de Miranda Ebraico
Antes de nos debruçarmos sobre o conteúdo específico das teses de Platão sobre a justiça, vale considerar o papel que ele atribuía a essa última dentro de seu sistema de filosófico. Esse papel é único: na verdade, como acentua ABBAGNANO[1], se a sabedoria ocupa, dentro desse sistema, posição mais alta do que o mero saber, isso se deve a que só ela é considerada capaz de permitir a realização da justiça, considerada o fim último da práxis filosófica. RENÉ SÈVE reforça as considerações de ABBAGNANO: afirma que o fato de que “dans la tradition occidentale, l’approche la plus courante de la justice fait de celle-ci la vertu morale principale”[2] tem sua origem no Livro IV de A República, onde, ao estudar a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça – virtudes que, a partir de TOMÁS DE AQUINO, passarão a ser chamadas de “cardinais” – considera-se essa última como a verdadeira fonte de todas as outras e a causa de seu equilíbrio recíproco.
Posto o privilegiado lugar da justiça dentro do edifício teórico de Platão, vale detalhar algumas das teses principais desse último relativamente à natureza daquela, quais sejam:
1) A justiça ocorre em duas dimensões: a da relação de um indivíduo com os demais e a da relação de um indivíduo consigo mesmo;
2) Indivíduo Ideal é o indivíduo que mantém a justiça entre as partes que o compõem - a razão, a vontade e o desejo - sendo entendida essa justiça como a obediência do desejo à vontade e dessa última à razão;
3) O Estado Ideal é o estado que mantém a justiça na relação entre suas três classes – os sábios (= a razão), os militares (= a vontade) e os trabalhadores (= o desejo) – sendo entendida essa justiça como a obediência dos trabalhadores aos militares e a desses últimos aos sábios;
Se fôssemos esboçar algum tipo de crítica à visão platônica da justiça, começaríamos nossas considerações a partir dos comentários de GILBERT RYLE: “Just as in his political thinking Plato sometimes treats the working class as a deplorable necessity, so in his ethical thinking he is inclined to treat our impulses and desires in similar fashion.”[3] Como sustenta BERTRAND RUSSELL, em sua História da Filosofia Ocidental[4], a noção platônica de justiça parece adequar-se muito pouco à organização de um sistema político de natureza democrática.

[1] ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofía. México: Fondo de Cultura Económica, 1963, p. 917.
[2] JACOB, André (org.). Encyclopédie Philosophique Universelle. Paris: PUF, 1990, vol. I, p. 1046.
[3] EDWARDS, Paul (ed.). The Encyclopedia of Philosophy. New York: Macmillan, vol. VI, p. 330.
[4] RUSSELL, B. Op. cit., vol. I, p. 132-137, passim.

NOTAS FILOSÓFICAS (I): OS DOIS GRANDES TIPOS DE QUALIDADES

É interessante a pouca atenção dada, na classificação das ciências – sendo mais famosa dessas classificações a de Dilthey, que distingue as Naturwissenschaften (= Ciências da Natureza) das Geisteswissenschaften (= Ciências do Espírito) – à diferença entre “qualidades primárias” e “qualidades secundárias”, elencadas as primeiras entre as passíveis de quantificação (por exemplo, peso, altura, temperatura etc.) e as segundas, entre as que não quantificáveis (raiva, tristeza, pena etc.). Essa diferenciação entre qualidades primárias e secundárias – tão fundamental para uma adequada classificação das ciências – merece alguns reparos.
Primeiro, quando se fala em possibilidade, ou não, de quantificar uma qualidade, estamos falando da possibilidade real, em um determinado momento histórico, de o fazer: quem pode afirmar que, em algum momento futuro, não será possível quantificar qualidades atualmente não quantificáveis?
Segundo, a suposta impossibilidade de quantificação não passa de impossibilidade de uma quantificação precisa. Embora não tenhamos condição de dizer se estamos sentindo 20,7 ou 34,5 “psicotrons” de raiva, podemos, perfeitamente, dizer se estamos com “pouca” ou “muita” raiva, com “mais” ou com “menos” raiva.
Por isso, entendo que, em vez de seguir a tradição filosófica de chamar as qualidades primárias de “objetivas” e as segundas de “subjetivas”, seria mais correto opô-las, não segundo a dimensão “objetivo-subjetivo”, mas segundo a dimensão “preciso-impreciso”, deixando claro que ciências como a Psicologia, que trabalham com as qualidades secundárias, podem ser menos precisas, mas não são necessariamente subjetivas.

quinta-feira, outubro 06, 2005

ECONOMIA POLÍTICA

A definição de Economia Política, evidentemente, depende de uma clareza relativa ao que seja “fato econômico” e “fato político”. Propomos o seguinte:
Fato econômico = df qualquer fato relativo à produção, à distribuição ou ao consumo de valores sujeitos à escassez.
Fato político = df qualquer fato relativo a relações de poder.
O que, naturalmente, permitiria que Economia Política fosse definida da seguinte forma:

"Economia Política = df ciência que se ocupa das inter-relações entre fatos políticos e fatos econômicos."

Ou, mais desdobradamente:

"Economia Política = df ciência que se ocupa das inter-relações entre, por um lado, as relações de poder e, por outro, a produção, distribuição e
consumo de valores sujeitos à escassez."

SOBERANIA

O conceito de “soberania” – palavra derivada do latim superanus ( = “poder supremo”) –como todos os demais conceitos – de Estado, de governo, de democracia etc. – que possuem uma essencial correlação com o de “poder”, tem sua compreensão significativamente alterada segundo o contexto político em que se encontra. O avançado em 1576 por Jean Bodin, por exemplo, tinha por escopo dar fundamento ideológico à cruzada centralizadora da coroa de França; o associado à teoria contralualista de Locke (fim do século XVII) e Rousseau (séc. XVIII) – e assumido pela constituição americana (1776) – tinha, em consonância com o espírito desse tempo, o objetivo de deslocar a titularidade da soberania para o povo; já o consagrado na constituição francesa de 1791, pretendia adicionar a esse deslocamento de titularidade a indivisibilidade ( = “nenhum grupo pode atribuir soberania a si próprio nem pode um indivíduo arrogá-la para si mesmo”, reza a famosa carta), inalienabilidade e imprescritibilidade dessa soberania, não obstante, em sua origem, tal soberania tivesse sido supostamente outorgada.
Também modificaram-se, ao longo do tempo, as posições ideológicas relativas ao imediato executor e guardião da soberania, fosse qual fosse o seu titular. No século XIX, o jurista inglês John Austin investia o Parlamento daquele papel, mas, não muito depois, do outro lado do Atlântico, a Suprema Corte dos Estados Unidos contestou essa hegemonia parlamentar ao lutar com sucesso por seu direito de invalidar leis ao considerá-las inconstitucionais. Tal percurso, entretanto, em vez de atribuir ao Judiciário a supremacia arrancada ao Legislativo, terminou por atribuí-la não mais a determinado segmento do Estado, mas, sim, às Cartas Magnas que os ordenam: as Constituições. Essas, por sua vez, ao incluir cláusulas que especificam as condições em que podem ser modificadas, reconhecem ser externa a elas a titularidade da soberania que corporificam...
No século XX, tais vicissitudes históricas levaram alguns autores (Léon Duguy, Hugo Krabbe, Harold Laski etc.) a sustentar que a soberania, vítima dos ventos políticos que agitam interna e externamente cada Estado, continuamente se desloca, dentro e fora deles, o que implica a negação das características de indivisibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade que a carta francesa de 91 lhe outorgara.
Vale acentuar que foi no relativo à sua dimensão externa, seja, correspondente às relações de Estados independentes entre si, que a teoria e a prática da soberania sofreu, nos últimos cem anos, suas principais mudanças, essencialmente no que diz respeito às suas limitações. A direção em que essa mudança deveria ocorrer já transparece no seguinte trecho de Kant, retirado do seu A Ciência do Direito:
“(1) Os Estados ... em suas relações externas – como selvagens sem lei – encontram-se naturalmente em uma condição não jurídica; (2) Essa condição natural é um estado de guerra em que o direito do mais forte prevalece”, mas logo afirma que essa condição “é errada por si mesma” e acrescenta que (3) “Uma aliança de nações, acorde com a idéia de um contrato social original, é necessário para proteger cada uma delas contra agressões e ataques externos, sem que isso envolva interferência em suas internas dificultades e litígios” (Parte II, inc. 54).
Pouco mais de cem anos após haverem sido escritas essas linhas e as Conferências de Haia realizadas em 1899 e em1907 dão uma primeira forma ao processo que, na Carta das Nações Unidas, datada de 1945, materializa explicitamente a disposição internacional de tornar concretas as recomendações de Kant, afirmando que todos os Estados-Membros daquela entidade “deverão resolver suas disputas internacionais por meios pacíficos, de tal maneira que a paz, segurança e justiça não sejam prejudicadas” (Cap. I, art. 2, inc. 3)
Nossos tempos, portanto, já não mais aprovam a “soberania” sem peias, mesmo nas relações internacionais. Eventos recentes como a recente invasão do Iraque insistem, entretanto, em nos relembrar da enorme distância que pode se interpor entre a existência de um ordenamento e o cumprimento a ele. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2003

A MORAL E O DIREITO

I) INTRODUÇÃO
No que se segue, estaremos, necessariamente, trabalhando com conceitos. Com efeito, como relacionar dois termos, como Direito e Moral, se insatisfatoriamente definidos? Para nossos propósitos, portanto, torna-se essencial escolher – quando não, criar – conceituações satisfatórias de desses dois termos. Derivadamente, como logo veremos, a busca de definições satisfatórias de Verdade, de Ciência e de Política de deverá também ser enfrentada.

II) CONCEITOS
1) O Conceito de Verdade
Através de sua história, a humanidade tem aplicado dois critérios para distinguir o real ou verdadeiro do falso ou enganoso. São eles:
(1) o critério da intensidade e nitidez
(2) o critério da coerência.
É o primeiro desses critérios que nos faz dizer, saídos de um sonho: – “Caramba, era tão real!” Essa sensação de “realidade” ou de “verdade”, deriva de um mecanismo psicológico a que, via de regra, nos referimos através do termo inglês imprinting ( = “impressão”, no particular sentido de “aquilo que foi impresso”), e que significa, basicamente, que as “impressões” recebidas sob o estado de imprinting têm maciça prevalência sobre as demais, de forma que optamos por considerá-las verdadeiras e, segundo elas, pautar nosso comportamento.
A hipnose é uma situação de imprinting: Se, a um sujeito sob transe, o hipnotizador, após ter tocado seu braço com um dedo, diz que aquele toque corresponde a um cigarro acesso, vemos ocorrer, no braço do hipnotizado, bolhas correspondentes às de uma queimadura! Um sujeito apaixonado também se encontra, em relação a seu afeto, em situação de imprinting: pode ter atingido os píncaros da fama, da propriedade e do poder, mas se o objeto de sua paixão lhe diz “Você não vale nada!”, para o apaixonado, essa será a “verdade”, que tenderá consoantemente a precipitá-lo na mais cruel crise de desvalor...
O segundo desses critérios de “verdade” é o da coerência. Esse é o critério que, aplicado de maneira sofisticada, rotineira e sistemática, veio a caracterizar o tipo de verdade a que se convencionou chamar de “científica”.
As ciências chamadas “formais” – a Matemática, por exemplo – se ocupam em obedecer a critérios, metodologicamente consensuados, de fiscalização de coerência lógico-formal; as chamadas “factuais” devem dobrar-se a critérios, metodologicamente consensuados, de fiscalização de sua coerência lógico-formal e empírica.
A verdade avaliada segundo o critério da intensidade é, essencialmente, de natureza autoritária: alguém tem tanta importância que o que diz passa, ipso facto, a ser verdadeiro. Se o rei é importante, o que ele diz passa a ser real. É um tipo de avaliação denominada ad hominem: não se avalia o que é dito, avalia-se quem o diz.
A verdade avaliada segundo o critério da coerência é, essencialmente, de natureza democrática: ninguém tem suficiente importância para que, automaticamente, o que diz passe a ser verdadeiro. A afirmação em si, independentemente de quem a enunciou, deve ser submetida a prova. É o tipo de avaliação denominada ad rem: não se avalia quem o diz, mas o que foi enunciado.
A passagem da validação ad hominem para a validação ad rem é rebento da descentralização política. No Ocidente, a Inglaterra foi o berço dessa descentralização, oficialmente iniciada quando, em 1215, o malfadado João sem Terra, pressionado por burgueses e barões, assinou a Charta Magna, estabelecendo limites “constitucionais” ao poder do rei. Não deve ser à toa que, na língua dos ingleses, relativo a realeza é royal, enquanto o relativo a realidade é real: realeza e realidade, aqui, são diferençadas. Significativamente, em nossa língua, tal discriminação não ocorre: a expressão “uma figura real”, remete tanto à realidade quanto à realeza...
2) O Conceito de Ciência
Ancorados no que dissemos sobre a verdade, podemos nos acercar do conceito de ciência.
O “conhecimento científico” é – ficando isso particularmente marcado a partir do século XVII, frente os embates entre Galileu e a Igreja – aquele que suportou o teste de sua coerência com os demais dados que temos a nosso dispor. Credo quia absurdum, não é, certamente, o mote da ciência.
Vale assinalar que o que chamamos de ciência tem duas fundamentais referências: a de um empreendimento cujo objetivo é produzir afirmações lógica e empiricamente coerentes e a de o corpo de conhecimentos que, em um determinado momento histórico, resultou de tal empreendimento.
Quando falamos de ciência, entretanto, importa distinguir entre ciência pura, ocupada em produzir teoria – seja, em distinguir o verdadeiro do falso, em nossas tentantivas de compreender o mundo – e ciência aplicada, ocupada em produzir técnicas – seja, em distinguir o eficaz do ineficaz, em nossas tentativas de o manipular. Temos, assim, a Física, como ciência pura, e a Engenharia, como ciência aplicada, que naquela precipuamente se apóia; a Química, como ciência pura, e a Farmacologia, como ciência aplicada, que daquela particularmente se alimenta; a Biologia, como ciência pura, e a Medicina, como ciência aplicada, et coetera...
Se entendermos o Direito, como iremos fazer aqui, como ciência aplicada, sobre que – ou quais – ciência(s) pura(s) encontraria ele seus preferenciais fundamentos?
Antes de ensaiarmos uma resposta a essa pergunta, vale, entretanto, perquirir um pouco a natureza do que, enquanto ciência, merece ser entendido por Política.
3) O Conceito de Política
Dos vários definiens atribuídos ao definiendum “Política” – referido a uma ciência pura, não, aplicada – o seguinte é o que mais nos convence:

Política = df ciência pura cujo objeto são as relações de poder.


Se passarmos à dimensão aplicada, teríamos:

Política = df ciência aplicada cujo objetivo é promover e preservar um
determinado tipo de relações de poder.



Posto isso, podemos avançar sobre o conceito de Moral.

4) O Conceito de Moral
Impossível, como introdução, não falar de Einstein, cuja obra, como bem assinalam Sokal e Bricmont em seu admirável “Imposturas Intelectuais”[1], foi mala fide empregada – analogamente ao que, com Nietzsche, fizeram os nazistas – pela praga intelectual “pós-modernista” para justificar a indiferença axiológica e epistêmica: sendo tudo relativo, não há como separar o verdadeiro do falso, nem o bom do mau...
Recuperemos Einstein. Na obra em que pretende pôr seu trabalho ao alcance do leitor leigo, esse gênio da Física – ou, melhor ainda, da Filosofia – é cristalino: relativos são os pontos de vista, não as afirmações que se seguem, uma vez que determinado ponto-de-vista foi privilegiado.
O exemplo que emprega para expor seu pensamento é translúcido: não existe uma trajetória verdadeira para se descrever a queda de uma mala do bagageiro de um trem que passa velozmente por uma estação, se não está determinada a posição do sujeito que a observa. Para quem que se encontra dentro do trem, essa trajetória será, naturalmente, vertical; para quem se encontra na plataforma, essa trajetória será oblíqua.
Leia-se: se a relatividade, por um lado, nos liberta, mantém essa liberdade igualmente relativa: não nos dá latitude para achar que o observador de dentro do trem poderia estar vendo a mala cair em uma trajetória oblíqua, nem a de que o que está fora dele pode percebê-la caindo em uma vertical!
Se transportamos as considerações de Einstein – como entendemos cabe ser feito – da dimensão epistêmica, para a axiológica[2], escapamos, com ele, do absolutismo ético – o que for entendido como moral de um determinado ponto-de-vista pode, facilmente, ser encarado como imoral ou amoral de outro – sem mergulhar no caos da indiferença valorativa.
Tempo – onde encontraria acolhida, hoje, o jus prima noctis? – e espaço – que país não islâmico sustentaria o apedrejamento de uma mulher acusada de prevaricar? – são fatores que dão origem aos variados pontos de vista a partir de que se constróem essa ou aquela axiologia, essa ou aquela ética, essa ou aquela moral. E que expressam esses diversos pontos de vista, senão as relações as relações políticas – de poder – que vigem nesta ou naquela sociedade?
Estaríamos, já, em condição de adequadamente entender as relações entre Direito e Moral?
Bem, não sem antes, certamente, explicitar o que iremos entender por Direito.
5) O Conceito de Direito
Para chegarmos a um conceito nosso de Direito, e, a partir daí, considerarmos sua relação com o de Moral, tomemos como ponto de partida o que nos propõe Pedro Nunes, em seu Dicionário Tecnológico de Direito:


DIREITO = df “Ciência normativa que estabelece e sistematiza as regras necessárias para assegurar o equilíbrio das funções do organismo social, à obediência
de cujos membros são coercitivamente impostas pelo poder público.”[3]



Discutamos essa conceituação:
(1) A partir de nossa análise do conceito de verdade, explicitamos anteriormente o que está sendo compreendido aqui por ciência, que logo subcategorizamos em pura e aplicada. Não vemos como escapar de entender que a expressão “ciência normativa”, empregada por Nunes, equivale a segunda daquelas subcategorias e, isso posto, nos alinhamos com ele nesse fragmento de sua definição. Temos, portanto, em nossos termos:


DIREITO = df “Ciência aplicada que...


(2) Ciências puras tem objetos – a Física estuda a energia e a matéria, a Química, energia e matéria organizadas sob forma de elementos e substâncias, a Biologia a esses elementos e substâncias organizados sob a forma de vida, etc.; ciências aplicadas, por outro lado, tem objetivos – a Engenharia volta-se para construir prédios, automóveis etc, a Farmacologia para produzir remédios, antídotos e vacinas, a Medicina para promover e preservar a saúde física do indivíduo humano. Quando falamos sobre objetivos, muito mais do que quando falamos sobre objetos, difícil escapar de considerações axiológicas, mais do que isso, éticas, mais do que isso, morais. E qual seria o objetivo do Direito? Vejamos como Nunes enfrenta essa questão.
(3) Ele o faz dizendo que o Direito “estabelece e sistematiza as regras necessárias para o equilíbrio das funções do organismo social”. Segundo Nunes, portanto, o objetivo da “ciência aplicada” do Direito seria “o equilíbrio das funções do organismo social”. A palavra “equilíbrio” abriga sutil polissemia e, ao abrigo dela, podem ser veiculados seriíssimos mal-entendidos. Recorramos a Aurélio[4]:
“1. Fís. Estado de um sistema[5] que é invariável com o tempo.[6] ... 3. Igualdade, absoluta ou aproximada, entre forças opostas. 4. Fig. Boa proporção, harmonia ... 7. Fig. Estado inalterável.”
Parece-me que entender “equilíbrio” no espírito dos sentidos 1 e 7, de Aurélio, se adeqúa bastante mais ao objetivo a que, nas diversas sociedades, se presta o Direito, do que entender tal termo nos sentidos 3 e 4. Seriam de “boa proporção e harmonia” ou de “igualdade, absoluta ou aproximada, entre forças opostas” as leis exaradas pelo Terceiro Reich em relação aos judeus? Óbvio que não. Tais leis não faziam mais do que tentar estabilizar, perpetuar, tornar inalteráveis, as relações de poder que, naquele momento, vigiam na sociedade alemã.
Se pretendemos que nossa definição de Direito indique com clareza – e a isso se devem prestar as definições – os fenômenos a que, de fato, se refere, “equilíbrio”, na definição de Nunes, deve ser substituído por “estabilização”, “perenização”, “padronização”, “cristalização” ou quejandos.
(Um comentário de menor monta, com mero propósito de simplificação léxica: Nunes, em sua definição, afirma que o Direito “estabelece e sistematiza”; essa expressão, cremos, pode ser vantajosamente substituída por “codifica”)
Frente ao exposto, propomos assim ampliar nossa definição:


DIREITO = df “Ciência aplicada que codifica normas de conduta que têm por objetivo preservar certos valores...


Avancemos mais um pouco:
(4) O trecho seguinte da definição de Nunes – “à obediência de cujos membros são coercitivamente impostas pelo poder público” – a parte ser sintaticamente catastrófica – alude, segundo nosso entendimento – e só pudemos dar-lhe sentido supondo, não sem melindres, que “as regras necessárias” é o sujeito elíptico de “são impostas” – alude, como dizia, ao fato de que o agente que pretende realizar o objetivo a que se presta a ciência aplicada do Direito é o Estado. Para isso, naturalmente, esse mesmo Estado, para garantir a obediência às normas de conduta que considera desejáveis, deve estabelecer sanções para os que aquelas normas infringem. Teríamos, assim:


DIREITO = df “Ciência aplicada que codifica, juntamente com as sanções a serem aplicadas, pelo Estado, por sua infração, normas de conduta que têm
por objetivo realizar certos valores...


(5) Voltemos a Einstein – e à definição de Política – para tentar caracterizar melhor os “valores” a que se refere nosso embrião de definição do Direito. Os valores dominantes em uma sociedade são determinados pelas relações de poder que nela operam. Nesses “valores dominantes” consiste, na verdade, a “moral dominante” de uma determinada sociedade. Promover e preservar essa moral dominante é tarefa parcialmente assumida pelo Estado: parte da moral dominante irá ser codificada e transformada em direito, ou seja, regulada por normas e sanções, vigília de cujo cumprimento será missão do Estado que as estabeleceu. Ao fazer isso, naturalmente, o Estado poderá tanto estar avançando na direção para que se desloca a sociedade ou tentando obstar a que esse deslocamento ocorra. Há, indiscutivelmente, abissal distância entre um Kemal Ataturk e um Médici... Isso nos leva a completar, da seguinte forma, nossa definição:


DIREITO = df “Ciência aplicada que codifica, juntamente com as sanções a serem aplicadas, pelo Estado, por sua infração, normas de conduta que têm
por objetivo promover e preservar certos valores que,
numa sociedade, expressam as relações
dominantes de poder.


(6) Ora, relações de poder não são estáticas, são dinâmicas e, à esteira desse dinamismo, vê-se contínuo processo dialético entre, de um lado, o direito codificado e, de outro, a jurisprudência e execução dele. Na Índia, por exemplo, o casamento arranjado entre menores, hoje condenado pela lei, continua, particularmente no interior do país, a viger sem peias.

III) Conclusão
Se entendermos o Direito, vimos fazendo aqui, como ciência aplicada, sobre que – ou quais – ciência(s) pura(s) encontraria ele seus preferenciais fundamentos?
Como vimos, ciências puras lidam, em princípio, com as diferenças entre o verdadeiro e o falso, enquanto as aplicadas se ocupam, além de com aquelas diferenças – é verdade, ou não, que, aplicando este medicamento, prolongarei a vida deste paciente? – com a diferença entre o bem e o mal – será bom, ou não, prolongar a vida desse paciente? Entenda-se: as ciências aplicadas têm duplo suporte: um suporte relativo à distinção – esta, científica – entre o verdadeiro e o falso e outro, relativo à distinção – esta, de caráter ético – entre o bom e o mau. Ilustro:
Quando Beccaria afirma ser objetivo do Direito distribuir o máximo de felicidade entre o maior número de pessoas[7] expressa um posicionamento sobre o que é bom e o que é mau, ou seja, explicita um posicionamento moral, tipicamente afim com as relações de poder vigentes durante a época em que viveu, o Iluminismo. Nada espanta, portanto, que a Igreja, lídima representante das relações de poder medievais, se tenha açodado para lançar Dei Delitti e delle Pene, dois parcos anos após sua publicação, nas gulosas entranhas do Index...
De outra parte, quando o mesmo Beccaria afirma, posto como objetivo do Direito distribuir o máximo de felicidade entre o maior número de pessoas, que tal objetivo será mais bem servido se arrancada do magistrado a função legislante, ficando-lhe apenas a judicatória, aqui não cabem considerações sobre se o que está sendo dito é bom ou mau, mas se verdadeiro ou falso.
Esclarecido que o Direito, tido por ciência aplicada, tem duplo suporte – por ser ciência, na ciência; e, por ser essa uma ciência aplicada, também na axiologia, na ética e na moral – façamos uma síntese de nossas considerações sobre esse último suporte, já que vem privilegiado no título deste trabalho.
O conjunto de mores de uma sociedade, sua moral, é passível de processo dinâmico, que expressa as relações de poder nela vigentes, as quais sofrem, elas também – em ritmo, ora menos (vide Idade Média), ora mais (vide século XIX) acelerado – inescapável evolução. Parte do resultado dessa dialética dos mores, da moral, é transformado em Direito, que, por sua vez, mormente por ação da jurisprudência, irá sofrendo alterações igualmente inelutáveis. Enfim: a natureza dos fatos políticos gera a natureza dos valores morais e, a partir daí, a das normas jurídicas – do Direito – que cada Estado procura impor a seus cidadãos. Os conflitos internos desses três elementos e deles entre si impõe a eles todos perpétua mutação.

IV) Apêndice:
Não acho desprezíveis as duas seguintes definições de Direito, que chegamos a desenvolver durante o brain storm que antecedeu à redação final deste trabalho, e, por isso, decidi deixá-las também registradas:


DIREITO = df “Ciência aplicada que, fazendo uso dos conhecimentos estabelecidos por ciências puras, tem por objetivo regular o comportamento
dos membros de uma determinada sociedade,
segundo seus padrões morais.




DIREITO = df “Ciência aplicada que, fazendo uso dos conhecimentos estabelecidos por ciências puras, mormente a Psicologia, tem por objetivo fazer que
o comportamento dos membros de uma determinada sociedade
sejam consoantes com um determinado
tipo de relações de poder.



BIBLIOGRAFIA

1. Abbagnano, N. Diccionario de Filosofia. México: Fondo de Cultura Económica, 1963, passim.
2. Beccaria, C. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 23.
3. Bertalanffy, L. von. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 1973.)
4. Ferreira, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2ª ed., s. d..
5. Nunes, P. Dicionário de Tecnologia Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
6. Sokal, A. & Bricmont, J. Imposturas Intelectuais. Rio: Record, 2001.



Rio de Janeiro, 16 de Março de 2003.

Luís César de Miranda Ebraico
[1] Sokal, A. & Bricmont, J. Imposturas Intelectuais. Rio: Record, 2001.
[2] Entendida Axiologia como “teoria geral dos valores” e, como tal, subsumindo a Ética, que tem por objeto de estudo a moral , ou seja, o conjunto determinado de valores, mores, que rege a conduta de um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos.” Cf. Abbagnano, N. Diccionario de Filosofia. México: Fondo de Cultura Económica, 1963, passim.
[3] Nunes, P. Dicionário de Tecnologia Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
[4] Ferreira, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2ª ed., s. d..
[5] Definido, por Bertalanffy, da seguinte forma: “conjunto de elementos em interação” (Bertalanffy, L. von. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 1973.)
[6] Melhor seria, naturalmente, haver dito: “Estado, invariável com o tempo, de um sistema”.
[7] Beccaria, C. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 23.